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Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistória

Esta é uma história com pormenores muito difíceis de digerir. Esta é uma história com pormenores que podem afectar a susceptibilidade dos mais sensíveis. Esta é uma história que precisa de ser contada. Porque é impossível ficar indiferente.

Salma Akter nasceu a 24 de janeiro de 2001, em Daca, capital do Bangladesh. A conversa entre nós começa como se Salma não tivesse nada para contar. Sinto que há uma enorme barreira, defesas, algo que procura proteger, algo que não quer revelar. Fomos conversando ao ritmo dela, devagarinho. Disse-lhe que estava ali para ouvir o que ela quisesse contar. E que, se mudasse de ideias, eu nem sequer escreveria. Porque as pessoas estão primeiro. Ao longo de toda a conversa, Salma esforça-se por ter um sorriso sempre presente. Que esconde uma dor enorme por detrás. Até que a revelação surgiu, numa explosão de choro.


- A minha mãe foi morta por 5 pessoas. Nós tínhamos uma família feliz, apesar das dificuldades. Havia um homem, um amigo da família, a quem a minha mãe emprestou dinheiro, sem o conhecimento do meu pai. Uma semana antes de morrer, a minha mãe teve uma grande discussão com o meu pai e decidiu ir buscar o dinheiro que tinha emprestado. Foi no dia 14 de julho. Achei estranho que ela levava o telemóvel com os nossos números escritos num papel. Para que precisava do papel se tinha os números no telemóvel? À noite, estava preocupada e liguei-lhe. A minha mãe disse para eu não me preocupar. Mais tarde, voltei a ligar e o telemóvel já estava desligado. No dia seguinte, a mesma coisa. Até que recebemos um telefonema da Polícia. Tinham encontrado o cadáver da minha mãe. As pessoas que a mataram tinham-na destruído completamente. Enrolaram-lhe o lenço no pescoço, destruíram-lhe os olhos, partiram-lhe as mãos, tinha sangue a escorrer da boca. E não havia ninguém em casa para ir buscar o cadáver. O meu pai tem problemas de coração e, se eu lhe contasse, podia ter um ataque cardíaco. Não sabia o que fazer. Pensei em matar-me.


As lágrimas de Salma irrompem violentamente. É impossível não sentir um aperto no coração, não sofrer com ela. Salma sente-se consumida pela culpa: por não ter feito mais, por não ter podido evitar, por não ter sido “forte”.


- Eu tinha algum dinheiro para a minha educação e dei ao meu irmão para ir buscar o cadáver. Eu queria enterrar a minha mãe perto da nossa casa, mas o senhorio não deixou. Levei o cadáver para casa da minha avó. Na nossa religião, temos de dar um último banho antes de enterrar o corpo. O cheiro era terrível, os bichos saiam do corpo. A minha avó e duas tias deram-lhe banho. Eu não tive coragem. Sinto-me culpada por não o ter feito. Depois de fazermos os últimos rituais, liguei ao meu pai a dizer que precisávamos de ajuda, que a mãe não tinha voltado. Apenas para ele voltar a casa, em segurança. Eu queria ocupar o meu pai, por isso, pedi-lhe para cozinhar enquanto a minha mãe não vinha. À noite, ele começou a perguntar por ela e eu comecei a contar pequenas coisas. Depois disse-lhe que tinha sido morta. De imediato, ele desmaiou e teve um ataque de coração. Pedi a Deus que não me fizesse viver isto duas vezes. Mas o meu pai foi para o Hospital e toda a responsabilidade ficou nos meus ombros.

O pai “esteve em coma durante três meses”. O irmão, com 16 anos, “ficou em choque durante um ano porque foi buscar o cadáver e acompanhou todos os procedimentos”. Salma, durante meses, “só bebia água e mal comia”. A partir daqui, a vida mudou. Muito. Salma estudava na Fundação Maria Cristina (MCF) e ia fazer o exame para o 10º ano. Além disso, costumava dar aulas a uma turma, em part-time, para ter algum dinheiro, mas, depois da morte da mãe, passou a dar aulas a oito turmas para ajudar a família. Tinha de pagar a renda da casa, a comida e os tratamentos do pai. Salma confessa que “não tinha tempo para dormir” porque “acordava cedo para ir para a escola, depois ia trabalhar e, quando chegava a casa, tinha de cozinhar”. Até aqui, Salma sempre tinha tido “notas máximas”, mas, desta vez, não conseguiu “ter A+”. E Salma, apesar de ter “tudo nos ombros”, culpabiliza-se por não ter tido melhor nota.




Passado um ano, o pai “começou a recuperar e voltou a trabalhar numa loja de chá”. A família passou a ter “um bocadinho mais de dinheiro” e Salma conseguiu voltar a ter alguma estabilidade para se dedicar aos estudos, tal como queria. Completou o 12º ano em 2020 e a 27 de outubro do mesmo ano foi para o Dubai fazer um estágio através da Fundação Maria Cristina (MCF). No Dubai, Salma vive em casa de Maria Conceição, fundadora da MCF: “A Maria é um anjo para mim. Um anjo que veio para me retirar as mágoas e dar felicidade”, diz Salma, emocionada e de sorriso aberto.



Salma vai ficar três meses e está “muito entusiasmada” com o estágio. Quer ser Engenheira de Aviões ou talvez Engenheira Química. E sonha estudar em Portugal. Para continuar os estudos, precisa de patrocinadores. Se não arranjar, talvez não consiga continuar a estudar.

A família continua no Bangladesh. Salma mantém o contacto “todos os dias”. O irmão “aprendeu a cozinhar e quer ser chef”, o pai continua a trabalhar na loja de chá. Salma sabe que quer ser “a mudança”: “Quero mudar a forma de pensar em relação às meninas. Quero ajudá-las a ter educação e impedir que se casem tão cedo. Quero mudar a perspetiva sobre as mulheres. Gostava de ser uma inspiração para a minha comunidade no Bangladesh”, afirma.

Antes de terminarmos a conversa, falamos sobre sentimentos e emoções. Ponho a imparcialidade de parte e digo-lhe que, na minha opinião, demonstrar vulnerabilidade não é um sinal de fraqueza, mas sim, de força. E que muitas pessoas, no lugar dela, não teriam aguentado tanto. Por isso, deveria orgulhar-se de ser tão corajosa. Mas Salma ainda sente que as emoções, a dor, as lágrimas, são sinal de fraqueza.

- Não mostro as minhas emoções, nunca demonstro as minhas fraquezas porque não quero que ninguém jogue com os meus sentimentos. Mostro que sou forte, estou sempre alegre e sorridente. Quero espalhar felicidade.

- Mas passaste por uma situação muito difícil e dolorosa… É natural chorar.

- Se eu chorasse perto do meu pai e do meu irmão, eles iam abaixo. Ainda hoje não demonstro os meus sentimentos ao pé deles. Se eu lhes mostrar as minhas fraquezas, eles também fraquejam. Nunca lhes mostro quão triste estou.



Salma faz das fraquezas forças. Com uma tenacidade incrível, tem o caminho bem definido e não está disposta a baixar a guarda. Pelo menos, com a maioria. Por baixo daquela capa de mulher irredutível, está uma menina frágil, que sofre com a perda da mãe, que carrega um trauma para a vida. Mas o sorriso prende-se-lhe no rosto e a poucos - quase nenhuns - permite ver o que está por detrás.

- Ninguém me pode quebrar. Sou forte nos meus planos. Vou fazer a minha família feliz.


E eu sei que vais, Salma.

 

Esta história é real e relata a vida de Salma, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 6 de novembro de 2020. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.

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