Há de tudo em Pedrogão.
Há lágrimas, desespero, revolta, mágoa, uma tristeza profunda.
E há também esperança, entreajuda, vontade de recomeçar, necessidade de retribuir.
Há de tudo em Pedrogão, Pobrais, Vila Facaia, Nodeirinho, Barraca da Boavista, Figueiró dos Vinhos...
Há pessoas que estão tão habituadas a ter pouco que o pouco que lhes oferecemos parece muito.
- Não preciso, filha, obrigada. Para já, estou remediada. Tenho o que comer.
- Para já? E na próxima semana, o que vai comer?
- Pois... (olha à volta) Ardeu tudo.
Enquanto deixa cair as lágrimas, sentamo-nos com ela, conversamos um pouco, damos um abraço. Podia ser a nossa avó, a avó de qualquer um de nós. Mais do que comida, estas pessoas precisam de atenção, de carinho, de alguém que lhes dê alento.
Há de tudo em Pedrogão.
Há quilómetros e quilómetros de negro, árvores tombadas, casas despidas, carros destruídos. Como se, num sopro, a vida, por ali, se tivesse esfumado.
Há quem lamente os bens que perdeu: a casa, a terra, o carro... E há quem preferisse ter perdido tudo isto, em vez da família.
Batemos a outra porta. Tocamos à campainha, ao portão. Ninguém, aparentemente. Resolvemos fazer "à antiga": bater palmas e chamar "oh da casa!". À porta, surge, encolhido em si mesmo, dobrado sobre o próprio corpo, um senhor com muita idade e peso nos ombros:
- Boa tarde! Nós viemos de Lisboa, somos três amigas... Gostávamos de ajudar... O senhor está sozinho?
- Estou. A minha mulher foi para os funerais e a GNR disse para eu não sair de casa por causa dos assaltos.
- Nós estamos com o senhor Arnaldo, era GNR aqui numa terra ao pé. Conhece-lo? (assente). Ele vai levar o saco aí dentro a sua casa. Nós escusamos de entrar... Então e está só com a sua mulher?
- Sim. O meu neto abalou!
- Abalou? Como assim? Foi para Lisboa?
- Não, filha. Morreu. Morreram todos: o meu neto, a minha neta, os meus bisnetos.
Desaba connosco e tentamos não desabar com ele. Damos um abraço, acarinhamos a mão, enrugada, enlutada. É impossível ficar indiferente à dimensão desta tragédia. Às vidas, às histórias, aos sentimentos esmagados, às dores escondidas. Queremos fazer mais. Por ele, pelos outros. Podiam ser os nossos.
Há de tudo em Pedrogão, Pobrais, Vila Facaia, Nodeirinho, Barraca da Boavista, Figueiró dos Vinhos...
Há quem lamente tudo - tanto - que perdeu. Há quem se agarre ao pouco que resta.
- A minha casa ardeu quase toda. Os meus terrenos... Não sobra quase nada. Mas há uma parte da casa que escapou... Eu gosto muito de ler, sabe?
- Ah sim? Também gosto muito de livros.
- Então venha comigo, vai gostar de ver.
Numa casa em que resta pouco mais do que a estrutura e algumas paredes, ergue-se ainda uma imponente biblioteca, forrada de livros até ao tecto.
- Desde jovem que leio um livro por dia... Perdi quase tudo. Mas não perdi os meus livros. Isso seria o meu grande desgosto.
Há de tudo em Pedrogão.
Há muita gente a querer ajudar - particulares, sobretudo. Voluntários. Cruzámo-nos com carros e carrinhas, carregados de comida, de roupa que, tal como nós, distribuíam, porta a porta. Conversavam, ouviam, tentavam encorajar.
Há de tudo em Pedrogão, Pobrais, Vila Facaia, Nodeirinho, Barraca da Boavista, Figueiró dos Vinhos...
Hoje há. Para a semana, talvez ainda haja. E daqui a um mês? Daqui a dois? Daqui a três?
O que será desta gente? Das suas dores? Dos seus amores? Dos sonhos? Das conquistas que ficaram por conquistar? Das palavras que ficaram por dizer? Dos terrenos que ficaram por trabalhar?
Que tudo o que se fez até hoje não tenha sido em vão. Que a tragédia que nos uniu o tempo não possa separar. Sim, nós vamos lá voltar. Nós vamo-nos lembrar. E vocês?
Esta é a história de Pedrogão, Pobrais, Vila Facaia, Nodeirinho, Barraca da Boavista, Figueiró dos Vinhos... Esta é a história de muitas pessoas e famílias. Anónimas. Porque não é necessário dar nome à dor. Podia ser a minha. Podia ser a vossa. Toda a gente tem uma história. E a tua, qual é?
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