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Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistoria

“Se estivesse em Daca, já estaria casada e com filhos. No Bangladesh, as meninas casam aos 12, 13, 14 anos”.

Lily tem 20 anos, nasceu em Daca, capital do Bangladesh, e chegou a Portugal em Fevereiro de 2019. Os olhos grandes e expressivos e o sorriso rasgado enchem-se de esperança de cada vez que fala no futuro. Os ombros encolhem-se, quase em jeito de resignação, quando explica os hábitos culturais do seu país de origem: “Quando os pais não têm dinheiro, as crianças são um fardo. Sobretudo, as meninas. Por isso, as famílias têm de dá-las em casamento. As meninas vão para casa de outro homem e a família passa a ter menos despesas. Quanto mais cedo se livrarem delas, melhor.”



Lily sabe do que escapou. Sonhava, desde criança, estudar no estrangeiro, mas achava que era apenas isso: um sonho. Agora vê em Portugal um passaporte para a liberdade. A hipótese de ter uma vida digna. Um futuro que vá além da imaginação: real, concreto, palpável, construído dia-a-dia. Lily acredita - e repete várias vezes - que é uma menina de sorte.

É a mais nova de três irmãs e um irmão. O pai era o único que trabalhava e “era muito difícil ganhar dinheiro para dar comida a toda a família”. Produziam o próprio pão numa tentativa de assegurar pelo menos um bem essencial. Mas não era suficiente. Os pais nunca estudaram. Por isso, queriam que os filhos tivessem educação. Mas quando o dinheiro não chega sequer para matar a fome, a escola deixa de ser uma prioridade.



Lily estudou até à 3ª classe e, até essa altura, não teve de trabalhar porque “era muito nova”. Uma excepção que muitas famílias não conhecem: "Muita gente nessa idade já tem de trabalhar. Provavelmente, após um ano ou dois, quando tivesse 10 anos, já teria de fazê-lo para ajudar os meus pais”. Foi nessa altura que conheceu Maria Conceição, responsável pela Fundação Maria Cristina, uma organização sem fins lucrativos que, desde 2005, ajuda crianças a sair da pobreza, providenciando-lhes educação e bens essenciais como alimentação, artigos de higiene, medicamentos, transporte, alojamento e até casa para as respectivas famílias.

“A Maria ajudou-nos com comida, medicação… Dava-nos tudo o que precisávamos para sobreviver. Eu queria continuar a estudar e, aos 8 anos, fui para a Fundação Maria Cristina. Os meus pais ficaram aliviados por não terem de pagar nada”, conta Lily. Estudou até ao 12º ano num colégio inglês. Ali, talvez mais do que em qualquer outro lugar, aprender uma língua estrangeira significava abrir as portas para o mundo. Para um mundo de possibilidades.

Lily sonhava ser médica ou piloto. Numa primeira abordagem, justifica que eram apenas “sonhos de criança”. Mas os olhos revelam mais do que, inicialmente, a boca queria contar.


- Quis ser médica porque eles salvam vidas, mas, hoje em dia, só querem saber do dinheiro!

- Porque é que dizes isso?, perguntei.


A esperança do presente parece querer calar as dores do passado. Custa-lhe recordar. Mas, aos poucos, decide partilhar.

- O meu pai morreu no ano passado, em Junho. Estava doente, com cancro. Ele esteve sob medicação durante dois ou três meses e o meu irmão e a minha irmã tentaram fazer tudo para ajudar. O meu irmão deu todo o dinheiro que ganhava e pediu emprestado a amigos. Eu não pude ajudar porque estava a estudar, aqui em Portugal, e não tinha trabalho. Na última vez que ele piorou, os meus irmãos levaram-no ao médico e ele morreu. Mas disseram-lhes que ele ainda estava vivo e precisava de tomar mais medicamentos. Tudo para ganharem mais dinheiro.


Todos os filhos têm esperança que os pais vivam muitos anos. Independentemente da idade, das mazelas do tempo ou da gravidade de uma doença. Quem ama, tem esperança. Seja em que circunstâncias for: “Quando soube que ele tinha morrido, fiquei em choque. Não tive hipótese de ir a Daca para me despedir. Era muito caro e nós não temos dinheiro. Eu era a princesa do meu pai. Quando ficou doente, só dizia o meu nome. Era a mim que ele mais amava”, conta Lily, com um sorriso doce e triste.



Ao longo da conversa, o dinheiro é um tema recorrente. Urgente, dramático. Para as jovens como a Lily, dinheiro é sinónimo de sobrevivência. Não aquela sobrevivência que o mundo ocidental conhece. Não a sobrevivência de ter um emprego decente, ganhar um ordenado razoável, comprar casa, carro, ter uma família. Mas aquela sobrevivência que representa… não morrer.


- Aconteceu o mesmo com o bebé da minha irmã., continua Lily.

- Como assim?, pergunto.

- Ele tinha problemas de pulmões, constipou-se e nós levámo-lo ao Hospital. Disseram-nos que, para admitirem o bebé, tínhamos de pagar primeiro. Pedimos tempo para ir a casa buscar dinheiro. Mas era um montante gigante, que não tínhamos. Estávamos longe de casa, demorámos muito tempo a ir e voltar. O bebé precisava de medicação e, como não a recebeu a tempo, morreu. Ele lutou muito. Sobreviveu durante 19 horas.



E, para os restantes, a vida continua. As irmãs “casaram e têm maridos”. O irmão também tem apoio da Fundação Maria Cristina: “Ele aprendeu inglês e a Maria deu-lhe a hipótese de ir ao Dubai a entrevistas de trabalho. Ele passou e hoje conduz um carro, é motorista”.

Além de estudar, Lily trabalha numa cadeia de fast-food, em Portugal, mas apenas em part-time. A pandemia de Covid-19 fez com que fosse “muito difícil arranjar emprego”. Lily vive no Porto, numa casa partilhada com outros alunos apoiados pela Fundação Maria Cristina e estuda International Business Management, no Instituto Politécnico de Bragança. O dinheiro que ganha chega, apenas, para pagar alojamento e refeições. Por isso, está preocupada.


- No primeiro ano não conseguimos pagar as propinas porque a Maria, provavelmente, não conseguiu patrocínios. Mas, se não pagássemos nada, a universidade não nos deixava passar de ano. Então, tivemos que negociar pagar mensalmente. Pedi um empréstimo a uma pessoa que nos ajuda muito na Fundação e, depois de ter trabalho, vou devolver-lhe o dinheiro. Mas estou muito preocupada. A Universidade pede-nos 2.500 euros por dois anos. E tenho de pagar até ao final do ano. Senão, pago multa. E, quanto mais tempo demorar a pagar, mais a multa vai aumentando. Se deixar de pagar, deixo de poder estudar. Estou em lista de espera para arranjar mais trabalho. Mas, por causa da Covid, a situação não está boa. O dinheiro que ganho, neste momento, não chega para pagar a universidade nem o empréstimo. Sinto-me cercada de ambos os lados.



A preocupação não lhe retira a esperança. A angústia não lhe trava a ambição. O medo não lhe apaga a resiliência. Nem os sonhos. Nem o sorriso. “Nunca tinha estudado nada relacionado com negócios, mas passei a todas as cadeiras. Um dia, quero montar o meu negócio de roupa. Quero ser uma mulher de negócios”, diz, como se já visse o futuro à sua frente. E esse querer, mais forte do que tudo, ganha asas: “Daqui a 10 anos vejo-me uma mulher de negócios de sucesso. Uma das maiores do mundo! Gostava de aparecer na capa de uma revista (risos). Like a business model. (Como uma modelo e empresária)”.

Apesar de estar focada no mundo empresarial, confessa que, se tivesse a oportunidade de encontrar um curso de Medicina lecionado em inglês, “ia sem hesitar”. A vida em Portugal “é uma luta também”. Mas não se sente sozinha, garante. Ofereceu um telefone à mãe e até conseguem comunicar por videochamada, de forma a encurtar a distância e as saudades. Como companhia tem os amigos de infância, que tal como ela, vieram do Bangladesh, através da Fundação Maria Cristina, à procura de uma vida melhor. E depois - garante Lily - adora “as pessoas”: “Os portugueses são fantásticos! Receberam-nos de forma muito amigável, ajudam quando pedimos e, mesmo quando não pedimos, vêm na mesma perguntar se precisamos (risos)”.

A conversa está prestes a terminar, despeço-me com um “boa sorte”, mas há algo que Lily ainda quer dizer…


- Marta…

- Sim?

- Se encontrares alguém que nos possa ajudar a pagar a faculdade, diz-nos por favor. Deixávamos de ter problemas. E eu ficava-lhe muito grata.


Direi, Lily. Está prometido. Se quiserem e puderem, ajudem a Fundação Maria Cristina. Neste momento, apoia 133 crianças, em Daca. E há muitas mais em lista de espera. À espera de uma oportunidade. À espera de sobreviver.

 

Esta história é real e relata a vida de Lily, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 26 de outubro de 2020. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.

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