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  • Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistoria

“O meu pai tinha o vício do jogo. Apesar de trabalhar numa loja onde ganhava bem, gastava o dinheiro todo e ainda pedia emprestado. Não pagava a renda da nossa casa nem comprava comida. Toda a família estava em crise por causa do vício dele. Além disso, torturava a minha mãe física e psicologicamente. Batia-lhe à nossa frente. Uma vez, quis que eu fosse buscar mais dinheiro, eu não fui e também me bateu”.



Aklima Aki nasceu a 5 de outubro de 2001, em Mymensingh, uma cidade perto de Daca, capital do Bangladesh. Foi a terceira de quatro filhos: três meninas e um rapaz. Ainda era bebé e já percebia que o pai - e o seu vício do jogo - eram o maior problema da família. Nessa altura, “chorava e ficava escondida”. Pouco mais podia fazer.

A falta de dinheiro para as coisas mais básicas e o acumular de dívidas obrigaram a mãe a procurar emprego numa fábrica de tecidos. Trabalhava das 8h às 22h - às vezes, até à meia-noite ou uma da manhã. Ganhava tão pouco que nem chegava para alimentar a família. A irmã mais velha de Aklima ficava em casa a tomar conta dos mais pequenos. E, quando teve idade para ir para a escola, não pode ir. Não havia mais ninguém que pudesse assumir aquela responsabilidade. Era uma criança a cuidar de outras crianças.



Em 2005, a irmã ouviu dizer que “uma senhora estrangeira chamada Maria” ia abrir uma escola e estava à procura de alunos. Falaram com a mãe e Aklima, a irmã mais velha e o irmão começaram a frequentar esta escola criada pela Fundação Maria Cristina (MCF). Maria Conceição, fundadora da MCF, apoiava-os também com comida, roupa e cuidados médicos. Em 2011, quando Aklima estava no quarto ano, a estrutura familiar - como a conhecia até então - mudou para sempre.

- O meu avô teve uma grande discussão com o meu pai porque ele continuava a gastar o dinheiro todo no jogo e não providenciava nada para a família. Então o meu pai saiu de casa e até hoje não sabemos se está vivo ou morto.


Aklima confessa que o pai ter saído de casa “foi um alívio”: “Agradeço muito a Deus que ele tenha ido embora. Quando estava connosco, era mais fácil gerir as despesas porque, de vez em quando, dava algum dinheiro. Mas a tortura psicológica para a minha mãe era terrível”. Aklima, a mãe e os irmãos ganharam alguma paz de espírito, mas as dificuldades financeiras pioraram:

- Foi difícil porque a minha mãe tinha de pagar as dívidas do meu pai. Vivíamos numa casa só com um quarto, sem eletricidade, água ou gás. Tínhamos que ir buscar água muito longe e cozinhávamos com madeira: eram precisas três ou quatro horas para fazer uma refeição. E comíamos só uma vez por dia.



Apesar de tudo - salienta Aklima - a mãe nunca desistiu da educação dos filhos: "A minha mãe não quer que tenhamos uma vida igual à dela. Por isso, nunca nos tirou da escola. Eu precisava de 30 takas (moeda do Bangladesh) todos os dias para os transportes e ela arranjava sempre. Às vezes, ia a pé e dava esse dinheiro à minha mãe para comprar comida”. No entanto, o pouco a que Aklima se agarrava também lhe foi retirado.

- Em 2013, a Maria Conceição deu a gestão da escola a uma pessoa do Bangladesh e ele roubou tudo. Deixou a escola sem nada. Nesse ano, fiquei em casa porque a minha mãe não conseguia pagar uma escola para nós os três.


A escola já há alguns anos que sofria de falta de financiamento devido à recessão económica provocada pela crise financeira internacional de 2008. Este foi o golpe final e Maria Conceição não teve outra alternativa senão fechar as portas. Felizmente, passado um ano, em 2014, conseguiu arranjar solução para que a Fundação Maria Cristina (MCF) pudesse continuar a apoiar estas crianças. Com a ajuda de patrocinadores, passaram a estudar numa escola privada do Bangladesh: “Continuávamos sem dinheiro, mas, ao menos, estávamos a estudar”, desabafa Aklima.



Como se a dura realidade que viviam não bastasse, as dificuldades agravaram-se para a família de Aklima.


- Passado algum tempo, a minha mãe adoeceu e ficou em casa durante 14 dias. Por causa disso, perdeu o emprego. Nessa altura, só a minha irmã mais velha trabalhava. Nem sequer tínhamos dinheiro para comer.


Foi, mais uma vez, através de patrocínios que Maria Conceição os “ajudou todos os meses com dinheiro para a casa e comida”. Algum tempo depois, a mãe conseguiu voltar a trabalhar e tanto Aklima como a irmã mais velha davam aulas a outras crianças para ajudar com as despesas. Em 2017, conseguiram mudar de casa: “Mudámos para uma casa boa com água, gás e eletricidade”. Para a maioria das famílias, nos países desenvolvidos, ter uma casa com condições básicas é um dado adquirido. Mas não no Bangladesh. Para a maioria das famílias, nos países desenvolvidos, é natural querer mais, ter ambição, reclamar da casa pequena, das chatices do trabalho, do dinheiro que não chega para ir de férias ou comprar mais uma prenda aos miúdos… Mas não no Bangladesh.

- Toda esta situação, desde que o meu pai saiu de casa, amadureceu-me. Nunca pedia nada à minha mãe, mesmo que precisasse. Vi-a ter muitas dificuldades para alimentar-nos. Por isso, nunca expressava as minhas vontades. O que a minha mãe nos dava eu aceitava.


Aklima conseguiu concluir o 12º ano no Bangladesh e, através da MCF, chegou ao Dubai no dia 30 de novembro de 2020 para fazer um estágio. Uma conquista que também foi difícil:


- Tive muitos problemas com a Imigração antes de vir para o Dubai. Estavam sempre a perguntar-me porque tinha de vir; para quê fazer o estágio, que era muito nova para vir… Além disso, só a minha mãe e irmã sabem que estou no Dubai. Não disse ao resto da família, senão iam dizer mal de mim. Iam pensar que vim para aqui fazer coisas más e feias.



No Dubai, sente que “não há diferenças entre meninas e rapazes” como acontece no Bangladesh. E estar ali, numa cidade cheia de oportunidades, fá-la acreditar que os seus objectivos de vida são possíveis e estão ao seu alcance: “Ainda sinto que é um sonho todos os dias”. Além de estar a fazer o estágio, Aklima faz o design e costura roupas “para ganhar dinheiro”. No entanto, aquilo que realmente ambiciona é ser médica.

- Quero ser médica porque, no meu país, vi muita gente morrer cedo por não serem tratadas convenientemente. No Bangladesh, temos médicos, mas cobram muito dinheiro. Por isso, quero ser médica e servir os outros. Quero também ajudar as mulheres e as meninas.

- Porque é que queres ajudá-las?, pergunto.

- Porque vi a minha mãe sofrer muito. Ela podia não ter dinheiro para a comida, mas nunca recusou educação, conta, com a voz embargada.

- E queres ajudar as mulheres e as meninas a fazer o quê?

- Quero ajudá-las a estudar, a ter trabalho, a serem independentes.


Aklima sabe que a mãe já tem muito orgulho nela. Mas quer demonstrar-lhe que é capaz de muito mais.


- Os vizinhos perguntavam porque é que a minha mãe fazia questão que continuássemos na escola. Diziam-lhe para nos mandar trabalhar para uma fábrica. Mas a minha mãe recusava sempre e respondia aos vizinhos que nós, os filhos, éramos a riqueza dela. E eu quero demonstrar que somos mesmo.



Depois do estágio no Dubai, onde está a poupar dinheiro para a Universidade, Aklima ambiciona estudar em Portugal. No entanto, como não existe curso de Medicina lecionado em inglês, vai optar por Engenharia Química para poder trabalhar como Farmacêutica.

Antes de terminarmos a nossa conversa, debruçamo-nos um pouco sobre sonhos e desilusões. Pergunto-lhe se há mais alguma coisa que gostaria de partilhar comigo. Depois de uma breve hesitação, desabafa.


- Ainda não consigo ter amigos rapazes por causa daquilo que vi o meu pai fazer à minha mãe. Eu não odeio o meu pai, mas não gosto dele. Para muitas raparigas, o pai é o homem mais importante da vida delas. Para mim, não. O meu pai deu cabo da nossa vida por causa do hábito do jogo. Por isso, até hoje não me misturo com rapazes. Tenho medo que sejam como ele e não quero passar pelo mesmo. É por isso que quero ser independente. Assim, se eu casar com o homem errado, não preciso de ficar com ele. Não preciso de passar pelo que a minha mãe passou.


Apesar dos seus jovens 19 anos, sabe que os homens não são todos iguais. Reconhece que existem homens bons. E tem consciência que está a projectar a sua experiência, a sua dor. Mas também sabe que nenhum homem é mais importante do que uma mulher. E que todos - homens e mulheres - devem ser tratados com o mesmo respeito. Com um sorriso doce, roupa florida e ar de menina, Aklima agiganta-se num grito de liberdade, pela igualdade de género, que deveria ser ouvido em todo o mundo.

 

Esta história é verídica e relata a vida de Aklima, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 26 de dezembro de 2020. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.

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