“Fui abusada por um homem quando tinha 5 ou 6 anos. Fez-me coisas que não devia. Mas só percebi o que tinha acontecido, mais tarde, com 13 anos, quando, na Fundação Maria Cristina, explicaram que era errado tocar daquela maneira. Nunca contei a ninguém. Absolutamente ninguém. No nosso país, isto é algo que mantemos em segredo porque é motivo de grande vergonha. Ainda hoje tenho medo quando falo sobre isto”.
Tisha (nome fictício) nasceu na região de Mymenshing, perto da capital Daca, no Bangladesh. Aos 19 anos - quase 15 anos depois - conta, pela primeira vez, que foi vítima de abuso sexual. Ninguém sabe: nem a mãe, as irmãs, amigas, um médico, alguém da comunidade… Só eu. Por isso, é uma obrigação e um dever ético proteger-lhe a identidade. Para ela, por ela. Aos poucos, a medo, Tisha vai desabafando sobre o que lhe aperta o peito.
- A minha mãe trabalhava e não conseguia tomar conta dos filhos. Acredito que isto não teria acontecido se ela estivesse comigo. Tenho mágoa em relação a ela, mas não posso culpá-la porque tinha de nos alimentar. Ela é que sempre tomou conta da nossa família.
O pai de Tisha teve problemas de saúde desde cedo, que lhe causavam limitações e o impediam de trabalhar. A mãe carregava às costas a necessidade de sustentar uma família de 5 pessoas: ela, o marido e três filhos - um rapaz e duas meninas. Nessa altura, as crianças iam à escola durante apenas uma parte do dia para poderem trabalhar no restante. No entanto, conta Tisha, “não era propriamente uma escola” porque “havia só uma professora para tudo”.
Quando Tisha tinha 7 anos, a mãe voltou a engravidar e, durante algum tempo, não pode trabalhar. O pai, doente, não conseguia sustentar uma família agora de 6 pessoas.
- O meu pai estava sempre com problemas de saúde… E como nasceu o meu irmão mais novo, a minha mãe não podia trabalhar. Tínhamos de pedir empréstimos para pagar a renda e, a partir de certa altura, já não conseguíamos. O dono da casa disse-nos que tínhamos de sair e tivemos que ir para outra casa sem eletricidade nem casa-de-banho. Nessa altura, sofremos muito.
Pouco tempo antes, a mãe ouviu falar da Fundação Maria Cristina (MCF) e levou os filhos para lá: tinham “uma refeição por dia, comida e, às vezes, chocolates”. Além disso, também podiam ter educação. Mas o pai não concordava.
- O meu pai não queria que eu fosse para a Fundação porque acreditava que a Maria (responsável pela MCF) ia fazer de mim cristã, tirar-me os rins e o fígado e vendê-los numa rede de tráfico humano, conta Tisha com alguma ironia.
- Mas porque é que ele pensava isso?
- Não sei… Talvez por a Maria ser estrangeira. Nós fomos os últimos estudantes a ser admitidos na MCF porque não tínhamos documentos de identificação. O meu pai não deixava que levássemos. Foi uma professora que nos reconheceu e deu-nos oportunidade de ingressarmos na MCF.
Em 2007, Tisha e dois irmãos começaram a estudar na Fundação Maria Cristina (MCF). No dia em que entrou, tudo era “extraordinário” e “parecia um sonho”. Para Tisha, ali tinham “tudo”.
- Tínhamos comida de manhã e à tarde! Estava muito feliz por ir para a escola. Nunca faltava!
Para além de estudar, desde o 6º ano, com 11 ou 12 anos, que Tisha trabalhava a dar aulas a outras crianças. Com o pouco que ganhava, comprava “coisas pessoais” para ela e para a irmã que os pais “não podiam comprar”. Sem compreender exactamente ao que se referia, resolvo perguntar de que se tratavam essas “coisas pessoais”. Seria roupa, acessórios, uma fita para o cabelo, algo que uma menina, na idade dela, pudesse desejar? Não.
- Nós, raparigas, precisamos de muitas coisas pessoais e os meus pais não podiam comprar. Eu recebia 500 takas, cerca de 3 ou 5 euros, por mês.
- Mas que coisas pessoais são essas?
- Coisas de raparigas… que só nós precisamos…
- De higiene?
- Sim - acaba por dizer um pouco envergonhada. Pensos higiénicos para mim e para a minha irmã. E o dinheiro que sobrava dava à minha mãe.
Tisha conseguiu completar o 12º ano e, no dia 27 de novembro, chegou ao Dubai, com o apoio da Fundação Maria Cristina, para realizar um estágio numa empresa. Mais uma vez, teve a oposição do pai: “O meu pai não queria que eu viesse porque achava que as pessoas iam falar mal de mim. A preocupação dele era o que as pessoas iam dizer. Tive de lutar por isto e a minha irmã ajudou”.
A 20 de fevereiro regressa ao Bangladesh para tratar do visto, com o intuito de continuar os estudos em Portugal. Quer estudar Direito para atingir um objetivo maior - por ela e pelos outros.
- Quero ser primeira-ministra do meu país para mudar as mentalidades. Quero igualdade de género, mais educação para todos e acabar com o trabalho infantil.
- Porque consideras que a educação é tão importante?
- A educação é o pilar de uma nação. Se não formos educados, nunca seremos um país desenvolvido como o Dubai. A mentalidade tem de mudar a favor da educação.
- E no que diz respeito à igualdade de género, o que gostarias de mudar no Bangladesh?
- As mulheres estão a ficar para trás, são desrespeitadas. Se o meu pai trouxesse peixe, o meu irmão comia mais e nós menos. Isto é comum e acontece em todas as famílias. A minha mãe levava pancada do meu pai por razões muito pequenas: por causa da comida estar salgada, por exemplo. Os homens dominam.
- O vosso pai batia-lhe à vossa frente?
- Sim. Quando eu tinha 15 anos, o meu pai batia-lhe muitas vezes. Quando tivemos consciência que era errado, impedíamos o meu pai e já não acontece tanto, mas ainda acontece.
- E a tua mãe reagia?
- Se a minha mãe reagisse, o meu pai batia-lhe mais. As coisas já não acontecem assim porque eu cresci e falo com eles. Mas não pararam completamente.
A família continua a passar dificuldades. Só a mãe trabalha “numa fábrica terrível” e o irmão mais velho “tem problemas há 8 anos”: “Talvez sejam deficiências porque quando a minha mãe estava grávida do meu irmão mais velho não conseguia alimentar-se correctamente”, explica Tisha.
Para além do estágio no Dubai, continua a fazer “trabalho de caridade”: “Não contribuo com dinheiro porque não tenho, mas dou o meu trabalho. Eu sei o que é passar necessidade. Por isso, mantenho muitos contactos com organizações no Bangladesh”.
Tisha quer ingressar na política para poder “influenciar as mulheres”. Tisha não tem nada, mas acredita que, com educação, o mundo está ao seu alcance. Para isso, tal como os outros estudantes da Fundação Maria Cristina, precisa de apoio financeiro - de doações ou patrocinadores - para poder ajudar a mudar o mundo para melhor.
Antes de terminarmos a nossa conversa, despeço-me com um agradecimento pela confiança em partilhar algo tão íntimo e desejo-lhe sucesso no futuro.
- Tisha, um dia, vou ver-te como primeira-ministra do Bangladesh e vou lembrar-me que, um dia, tivemos esta conversa.
- Muito obrigada, responde emocionada.
Eu acredito na Tisha. E ela só precisa que vocês acreditem também.
Esta história é verídica e relata a vida de Tisha (nome fictício), contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 30 de dezembro de 2020. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.
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