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  • Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistoria

“Quando eu era filha única, tínhamos o suficiente para sobreviver. Mas quando nasceram as minhas irmãs, o meu pai mudou: não conseguia concentrar-se no trabalho. Ele queria muito um rapaz e só tinha raparigas. Porque, no nosso país, respeitam mais os homens do que as mulheres.”



Tara tem 21 anos. Nasceu a 4 de março de 2001, no norte do Bangladesh. É a mais velha de quatro filhos: depois dela vieram mais duas meninas e - porque os pais “foram tentando sempre” - um rapaz.

Para os padrões do Bangladesh, o início de vida de Tara não foi muito difícil. Para os padrões ocidentais, seria impensável.


- O meu pai e a minha mãe tinham de trabalhar e eu ficava em casa.

- Sozinha?, pergunto.

- Sim, sozinha.

- Que idade tinhas?

- Talvez 4 ou 5 anos.

- Mas eras praticamente um bebé… E não era perigoso?

- Era… Mas, felizmente, nunca me aconteceu nada. Hoje em dia, seria ainda mais perigoso. As meninas nunca estão seguras. Têm de lutar para ser respeitadas. Às vezes, têm de lutar pela própria vida.

O pai, carpinteiro, e a mãe, a trabalhar numa fábrica, apesar de humildes, nunca quiseram descurar a educação da filha mais velha. Aos 5 anos, entrou para a escola pública, onde ficou durante dois ou três anos. Em 2007, uma tia ouviu dizer que na Fundação Maria Cristina (MCF) era possível ter aprendizagem em inglês. Tara entrou nesse ano.


- Tínhamos educação, comida, medicamentos, tudo o que fosse necessário. Era muito bom!


Nessa altura, já existia mais uma irmã e os pais tinham que “lutar muito” para providenciar o essencial às filhas: “Numa família do Bangladesh, ter mais do que duas crianças é muito duro”, explica Tara. Com o apoio da MCF, conseguiam fazer face às principais dificuldades. No entanto, em 2013, em resultado da crise financeira internacional, a escola da Fundação fechou.

- Foi muito difícil. Nessa altura, estava no 8º ano e tinha que fazer um exame para passar. Uma professora apoiou-nos e dava-nos aulas, de forma voluntária, num campo ao ar livre. Nesse ano, muitos estudantes desistiram da escola e começaram a trabalhar. Poucos continuaram a estudar. Mas fomos bem sucedidos. Tivemos excelentes resultados! E, quando a Maria soube que não tínhamos desistido e que tínhamos tido boas notas no exame, disse-nos que devíamos encontrar uma das melhores escolas do Bangladesh, com aulas em inglês, e ela pagava a educação. Não podia montar outra escola, mas podia financiar os nossos estudos.


Começaram por ser apenas 20 alunos. No mesmo ano, passaram a 200. Desde 2005, a Fundação Maria Cristina já apoiou os estudos de mais de 600 crianças e jovens. Atualmente, apoia mais de 130.

Para além dos estudos, desde o 6º ano que Tara dava aulas a crianças mais novas e o pouco que ganhava “dava aos pais”. Alguns anos depois - talvez por ter só meninas e desejar tanto um rapaz - o pai começou a “ganhar menos” no trabalho. A mãe continuava na fábrica e “nunca desistiu”, mas “às vezes, havia dinheiro para comer”, outras tinham que “pedir emprestado”:

- Pedíamos dinheiro emprestado aos Bancos para poder comer e depois pedíamos dinheiro emprestado à família para pagar aos Bancos.


A vida prosseguia com inúmeras dificuldades. Durante o verão, apenas tinham água potável “para quatro ou cinco dias”. Quanto ao gás, só havia de manhã:

- A minha mãe acordava às 3h ou 4h da manhã para cozinhar e entrava no trabalho às 8h.


Tara “tentava apoiar” a mãe, mas, depois das aulas, “dava aulas a quatro ou cinco alunos todos os dias” e “quando tinha pausa do trabalho, tinha de estudar”. Muitas vezes, estudava em casa dos alunos, enquanto ensinava. Uma das irmãs - a mais velha a seguir a Tara, com 4 anos de diferença - começou a estudar através da MCF aos 11 anos; a mais pequena teve apoio logo a partir dos 2 anos, com a educação pré-escolar. Tara terminou o 12º ano e foi para Portugal continuar os estudos no Instituto Politécnico de Bragança.



- Quando era criança pensava ser médica porque no nosso país não existem bons médicos e muitas pessoas pobres morrem sem tratamento adequado. Se eu pudesse ser médica, ia ajudar outras pessoas.


Mas como, em Portugal, ainda não existe curso de Medicina lecionado em inglês, teve de fazer outra escolha.


- Comecei a estudar Engenharia Química porque tinha bases de Ciência. Mas como não tinha patrocinador, tive que começar a trabalhar, em simultâneo, e era muito difícil conciliar com as aulas práticas do curso.


Mudou para International Business Management e trabalha numa cadeia de fast-food. Já está em Portugal há dois anos e hoje a família - sobretudo o pai - olha para ela de forma diferente.


- Quando vim para Portugal não tinha nada, mas, quando arranjei trabalho, tornei-me independente. Agora a minha família diz que ter uma filha é melhor do que um filho. Percebem que se não me tivessem deixado estudar nunca teria chegado aqui. Ficaria a sofrer, a trabalhar numa fábrica, sem futuro. A minha mãe nunca quis que as filhas passassem pelo mesmo. Nunca desistiu da nossa educação. Ela dizia que enquanto vivesse não precisava de mais nada, mesmo que deixasse de comer.



Também a mãe, que tanto lutou e nunca desistiu das filhas, teve agora a oportunidade, através da MCF, de ver um pouco do mundo, enquanto acompanha a educação das mais novas.


- As minhas irmãs e a minha mãe foram para o Dubai há cerca de 2 meses. A Maria deu esta oportunidade a 4 ou 5 famílias. Como as minhas irmãs são menores de idade, tiveram de levar a minha mãe. O meu pai ficou no Bangladesh com o meu irmão.


Depois do curso, Tara sonha “trabalhar numa multinacional para poupar dinheiro” e começar um negócio no seu país. À semelhança da mãe, que trabalhava numa fábrica de tecidos e costurava peças de roupa, em casa, para vender, Tara quer ter a sua própria loja. Mas, para já, os sonhos vão ter que esperar.

- O que ganho não é suficiente para me manter em Portugal. Tive que pedir empréstimos à minha família e ainda não consegui pagar as propinas da universidade. Não posso começar o 3º trimestre até conseguir poupar dinheiro: preciso de cerca de 5000 euros para alimentação, renda, faculdade, etc.


Mais do que prosseguir com os estudos, neste momento, a prioridade de Tara é apoiar a família:


- O meu pai está muito doente. Tem problemas de coração há mais de 15 anos. Nessa altura, quando descobriu o problema, quase não recebeu tratamento porque era preciso gastar muito dinheiro no médico. Mas há alguns meses começou a ter dores. Durante 15 anos não pode ir ao Hospital. Agora pode porque eu apoio.

Por isso, Tara decidiu fazer uma pausa nos estudos.

- A minha prioridade é ajudar o meu pai. Não vou contrair mais empréstimos. Vou poupar e, quando tiver dinheiro, volto a estudar.



Tara confessa ter muitas saudades da sua terra natal, mas sente que, em Portugal, a vida abre-lhe outras oportunidades.


- Portugal é muito diferente do Bangladesh. O sistema de transportes é fantástico. Os motoristas cumprem os trajectos, não saem da estrada. As pessoas são muito prestáveis: mesmo quem não fala inglês, tenta ajudar. No Bangladesh, os rapazes fazem comentários, dizem-nos coisas feias, aqui não. Cada um está na sua vida. Sinto-me mais segura. Aqui quando termino o trabalho à meia-noite volto para casa sozinha e não tenho medo. No meu país era impossível, tinha que pedir a alguém que fosse comigo.


Um dia, Tara quer ser um exemplo para a sua comunidade.


- Quando regressar ao Bangladesh, quero fazer voluntariado em escolas e fábricas, sobretudo com as meninas, porque os pais pensam que elas não merecem nada: nem educação nem respeito. São negligenciadas. No meu país, acham que as mulheres nascem para trabalhar, casar e cuidar da casa e dos filhos. Eu quero ser um exemplo: sou uma mulher e sou independente. Quando eu mostrar aos os pais tudo o que as meninas podem fazer, vão ficar contentes por ter filhas.


Para a família, sonha poder dar-lhes uma casa própria para que não fiquem à mercê de um senhorio que ameaça expulsá-los de cada vez que atrasam o pagamento da renda. Quando puder sustentar-se e ajudar os pais e irmãos, Tara pretende “apoiar a MCF, ser um dos patrocinadores, para que mais pessoas possam ter educação e um futuro melhor”.

Antes de terminarmos a nossa conversa - e tendo em conta a vontade de Tara de ajudar outras meninas - pergunto-lhe se, um dia, pretende ter filhos. Sorri, fica pensativa durante alguns segundos e resolve partilhar algo que “nunca tinha contado a ninguém”:


- Se eu tiver um filho biológico, gostava de adoptar dois.

- Ah, sim? E porquê?, pergunto.

- Porque qualquer pessoa pode dar à luz, mas nem toda a gente pode dar um futuro a um filho. Uma criança que nasce numa família pobre, tem os mesmos direitos das outras. Os pais não têm o direito de lhe destruir o futuro.


E com mais pessoas a pensar - e agir - como Tara talvez o mundo se torne num lugar melhor.

 

Esta história é verídica e relata a vida de Tara, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 16 de janeiro de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.

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