“No bairro de lata, vivíamos numa casa com apenas uma divisão e existia uma cozinha e uma casa-de-banho para quase 10 famílias. Todas as manhãs, havia uma longa fila para a casa-de-banho. Num quarto pequeno, ficavam quatro ou cinco pessoas. Não havia privacidade. Havia discussões, diziam palavrões, era caótico. E isso marca-nos enquanto crianças. Quando fui para a escola, tive dificuldade em adaptar-me. As palavras que eu usava não eram próprias para uma criança. Mas onde eu vivia falavam assim”.
Julhas nasceu a 7 de abril de 2001 numa aldeia no Bangladesh. Mas quase não tem memória desta altura. Do pouco que se lembra, recorda que, na estação das chuvas, as crianças iam apanhar mangas da árvore. E a recordação, provavelmente doce como o fruto, fá-lo sorrir. Mas, rapidamente, a vida - e a conversa - tornam-se amargas.
Julhas é o quarto filho de um grupo de cinco. Tem um irmão 12 anos mais velho, duas irmãs com a diferença de nove e quatro anos e outro irmão 12 anos mais novo. Nesta altura, o pai era a desgraça da família.
- O meu pai era viciado no jogo. Não trabalhava, estava sempre a jogar. Vendeu todas as propriedades, nem tínhamos casa. Vendeu até o recheio da casa e as roupas da minha mãe só para gastar no jogo.
- E a tua mãe não dizia nada?
- No nosso país, as mulheres não têm direitos e a minha mãe não podia dizer nada. O meu pai batia-lhe se ela dissesse para ele não vender as coisas ou para ir trabalhar.
Os avós, tios, até os irmãos mais velhos tentaram demovê-lo, mas “ele não queria saber”. Até que a mãe - por necessidade - resolveu dizer ‘basta’.
- A minha mãe resolveu vir para Daca à procura de trabalho. A minha irmã mais velha não podia ir à escola porque tinha de ficar a tomar conta de mim e o meu irmão trabalhava numa loja de mobília como carpinteiro.
- E o vosso pai?
- Nessa altura, o meu pai não foi connosco. Juntou-se a nós quatro ou cinco anos depois. Estava demasiado ocupado com a própria vida e com o vício do jogo.
- Mas conseguiam sobreviver? Ter dinheiro para a renda e para a comida?
- O que a minha mãe ganhava servia para pagar a renda. O meu irmão era muito novo e ganhava pouco. Não chegava para comprar comida.
- Então como faziam para comer?
- A minha mãe trabalhava como empregada em casa de outras pessoas e, às vezes, davam-lhe comida. Mas não era comida boa. Eram coisas que estavam no frigorífico há três ou quatro dias.
- E como era, para a tua mãe, uma mulher sem o marido numa cidade grande…?
- As pessoas diziam-lhe para ela se casar com outro homem, mas ela não quis porque podia ser alguém que não tratasse bem dos filhos. Então, decidiu que, se tivesse de ser mãe solteira, seria.
E foi, durante alguns anos. Enquanto isso, Julhas frequentou um infantário do Estado. Aos seis anos, conheceu Maria Conceição e começou a frequentar a escola da Fundação Maria Cristina (MCF).
- Davam-me o pequeno-almoço, alguma comida para mim e todo o material escolar. Davam-me brinquedos e também enviavam para o meu irmão.
Mas nem tudo foi fácil.
- Ao início, a adaptação aos professores foi difícil. As palavras que eu usava não eram correctas, mas onde eu vivia falavam assim. Senti-me muito envergonhado porque eu não conseguia mudar repentinamente. Leva tempo. À medida que fui tendo educação, fui aprendendo.
Quando o pai voltou a juntar-se à família quis retirar Julhas da escola e pô-lo a trabalhar, mas a mãe e os irmãos impediram-no.
- A minha mãe e o meu irmão eram os meus maiores apoiantes. E eu fui muito bom aluno desde o início. Ia para a biblioteca para aprender a ler em inglês mais depressa.
Quando estava no 7º ano, a escola fechou devido a desentendimentos com a equipa de gestão local e em resultado da crise financeira internacional. Durante algum tempo, Julhas estudou num “campo aberto” com “professores locais”, mas acabou por regressar à aldeia com a família, onde ficou seis meses sem ir à escola. Até que Maria Conceição conseguiu regressar a Daca.
- Eu voltei à última hora da minha aldeia e a Maria quase não me reconhecia, mas eu mostrei-lhe o meu cartão da escola e ela ajudou-me. Perdemos muitos amigos nessa altura. Os pais mudaram-se, eles foram trabalhar e depois já não voltaram. No início da escola da MCF havia mais de 700 alunos. Da segunda vez éramos 120.
Com o apoio da MCF, Julhas passou a frequentar uma escola privada, com ensino em inglês.
- A escola privada era muito boa, mas, ao início, os nossos colegas não nos receberam bem. Éramos os meninos pobres, da organização. Alguns professores também nos viam assim. Mas, com o tempo, demonstrámos a nossa educação e o nosso comportamento, começámos a ter boas notas e aceitaram-nos. Mas levou tempo, quase 1 ano.
Quando estava no 8º ano, voltou a ter de enfrentar um novo desafio. Os pais resolveram voltar à aldeia, em definitivo, e Julhas ficou a viver com a irmã e o cunhado. Mas não durou muito.
- Eles não podiam sustentar-me porque não havia dinheiro. Por isso, começaram a pressionar-me para sair de casa deles. Eu saí e fiquei dois ou três dias na estação de comboios.
Maria da Conceição estendeu-lhe a mão e conseguiu dar-lhe um tecto durante cerca de um mês. Até que o financiamento começou a faltar e Julhas não sabia a quem mais recorrer.
- O meu pai voltou para me ajudar e fiquei numa casa alugada.
- Ele ficou contigo?
- Não. Tinha de fazer tudo sozinho. Foi difícil porque tinha 14 anos.
- E como conseguias pagar a renda, a alimentação…?
- O meu pai e o meu irmão davam-me dinheiro para a renda e comida. Pediam muitos empréstimos com juros altos para conseguirem dar-me esse dinheiro.
Foi - e ainda é - à custa de muitos empréstimos que Julhas conseguiu prosseguir com os estudos. Terminou o liceu em 2019 e, durante dois anos, fez voluntariado na MCF com outro amigo, Al Amin. Julhas dava aulas de Matemática e Físico e, em conjunto com o amigo, ajudavam em toda a logística da Fundação Maria Cristina. Durante este período de tempo, Julhas esperava que a MCF lhe conseguisse financiamento para ir para a Universidade. Mas não foi possível.
- Percebi que era altura de me desenrascar sozinho. Comecei a dar aulas numa escola local, consegui algum dinheiro e pedi um empréstimo de 1500 euros. Consegui também um apoio de 1300 euros de um português. Com este dinheiro, consegui ir à India tratar do visto.
Chegou a Portugal em Dezembro de 2020 e “foi uma grande conquista”. De tal forma, que nem conseguia “controlar as emoções”. Está a estudar Engenharia Informática, no Instituto Politécnico de Bragança, e à procura de trabalho.
- Em Bragança, sem falar português, não conseguimos trabalho. Só há para os portugueses e brasileiros. Estou à procura de trabalho e a aprender português, mas, em Bragança, não há muitas oportunidades. Para trabalhar teria de ir para Lisboa ou para o Porto. Mas antes quero terminar o semestre aqui na universidade.
Depois de terminar o curso, gostava de “trabalhar numa empresa na UE” e regressar ao Bangladesh para “fazer carreira política”.
- Gostaria de ajudar a combater a corrupção. Mas, primeiro, preciso de ter educação. No meu país, a política funciona em torno de um partido, as eleições são ilegais, os votos são feitos pelo próprio partido para depois ficar no poder durante muito tempo. As pessoas vão votar, mas os votos já lá estão [dentro das urnas]. No meu país, é preciso dinheiro e poder para ter um cargo político. Por isso, primeiro, vou precisar de ter dinheiro para depois conseguir ter poder e ter a capacidade de erguer a minha voz, de forma correcta, para acabar com as injustiças.
Enquanto sonha com um mundo melhor, no Bangladesh, a sua família continua a lutar para sobreviver.
- Continuam a contrair empréstimos atrás de empréstimos. No nosso país, temos um sistema diferente. Aqui pede-se um empréstimo a um Banco, no nosso país é às pessoas. Por exemplo, peço um empréstimo de 1000 euros e tenho de pagar 300 euros por mês. Mais os juros. Para um empréstimo de 1000 euros chegamos a pagar no total 60 euros por mês só em juros. E em um ano temos que pagar tudo. No nosso país para o Banco emprestar dinheiro temos de ter propriedades. Mas nós não temos.
Inevitavelmente - como Julhas fala no pai - pergunto-lhe pelo vício do jogo.
- Quando o meu pai voltou a viver connosco jogava menos, não era regularmente como antes. Já não nos roubava e tinha trabalho: puxava riquexós e vendia frutas no mercado local. Acabámos por perdoar o meu pai. Nós somos religiosos e, segundo a nossa religião, é proibido jogar. Disse-lhe muitas vezes: ‘Por favor, não gastes o dinheiro no jogo. Prometo ajudar-te até ao meu último minuto de vida’. Às vezes, ainda joga. Mas não é a mesma coisa.
Tanto o irmão como as irmãs estão casados e com filhos.
- As tuas irmãs estão felizes nos casamentos ou foram casamentos arranjados?
- Elas têm uma vida igual à da minha mãe. Os maridos não jogam, como o meu pai fazia, mas têm pouco dinheiro. Não têm uma vida boa, mas é melhor do que era a nossa.
Por tudo isto, Julhas ambiciona ver a família “sem necessidades”:
- Os meus pais tiveram dificuldades a vida toda. Ninguém os ajudou. Quero vê-los sem terem de pedir dinheiro a ninguém. Quero dar-lhes dinheiro para a comida e quero poder comprar uma propriedade e fazer-lhes uma casa. Quero ver o meu irmão mais novo a estudar no estrangeiro. Quero ajudar todos.
Para além disso, Julhas já tem o seu próprio “clube” - como lhe chama - e pretende que, um dia, se torne numa grande organização “onde tudo seja transparente”. Quer “construir estradas” e “uma escola para as crianças”.
Antes de me despedir e de terminar a entrevista, pergunto-lhe se quer partilhar mais alguma coisa. Diz-me que já me contou tudo, mas pede se pode pedir um favor.
- Marta, posso pedir-te um favor?
- Sim, claro. Se eu puder ajudar…
- Vives em Portugal?
- Sim, em Lisboa.
- Então, podes, por favor, perguntar às pessoas que conheces se me arranjam um trabalho? Pode ser num restaurante, a fazer qualquer coisa. Só preciso de ganhar dinheiro…
- Claro que sim. Vou perguntar.
Desejei-lhe boa sorte e sucesso e cumpro o que prometi. Se estiverem a ler esta história e puderem ajudar o Julhas a conseguir um emprego, por favor, entrem em contacto com ele, através do Instagram @mdjulhasmondol. Hoje por ele. Quem sabe, amanhã, por nós.
Esta história é verídica e relata a vida de Julhas contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 23 de março de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho realizado para a Fundação Maria Cristina.
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