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Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistoria

Desta vez, começo pelo fim. Após cerca de uma hora e meia de conversa, Rana, um rapaz de 20 anos, nascido em Daca, capital do Bangladesh, diz:

- Também posso fazer-te algumas perguntas?

- Sim, claro. O que é que queres saber? Pessoal ou profissional?

- Um bocadinho das duas coisas. Pode ser?

- Sim, pode… Então… Chamo-me Marta, sou portuguesa, tenho 39 anos, não sou casada e estou grávida.

- (abre a boca de espanto e, talvez para disfarçar, coloca a mão à frente, enquanto abre um grande sorriso num misto de surpresa e admiração)

- Sabes - continuo - em Portugal e na Europa temos liberdade. Uma mulher não tem de casar aos 16, 20, 30, 40… Pode até nunca casar. E podemos ter filhos ou não. Fazemos o que queremos.

- (Sorri e acena com a cabeça em sinal de concordância ou compreensão)



Faz-me mais algumas perguntas sobre o meu percurso profissional e os olhos brilham quando partilho alguns pormenores sobre o trabalho em televisão. Quando estamos já a despedir-nos, confidencia:

- Sabes, Marta, abri o meu coração. Esta conversa comoveu-me mesmo. A forma como fizeste as perguntas e me deixaste falar à vontade… Eu não saberia o que dizer, se não perguntasses. Havia algumas memórias que eram apenas sombras na minha cabeça. E tu ajudaste-me a trazer-lhes luz.



Esta história também é feita de sombras e de luz. Como as de tantos outros meninos e meninas no Bangladesh. Rana nasceu a 2 de Junho de 2000 e, quando lhe pergunto pela primeira memória de infância, refere logo o dia em que entrou na escola. À medida que vamos conversando, por várias vezes, tento que ele volte um pouco atrás - porque o ímpeto de Rana é saltar sempre para os momentos felizes, aos quais se agarra para prosseguir.

Quando nasceu, a família era constituída por quatro pessoas: os pais, uma irmã mais velha e ele. Alguns anos depois, nasceu outra irmã. Viviam nos famosos “slums” - os bairros de lata que, segundo a Unicef, atualmente são cerca de cinco mil só em Daca e albergam mais de quatro milhões de pessoas. A família de Rana tinha apenas um quarto para cinco pessoas e partilhavam cozinha e casa-de-banho com outras famílias. De manhã, as filas eram tão grandes que Rana tinha de acordar de madrugada para conseguir usar a casa-de-banho antes de ir para a escola. O ambiente no bairro de lata “não era bom” e “os arredores eram muito sujos”. Questiono-me se terá tido infância.

- Tinhas tempo para brincar?

- Claro que sim! Era uma criança!, responde, sorridente, e com os olhos a brilhar.

- E brincavas a quê?

- Brincava ali… mas havia água suja e lixo.



O pai trabalhava na construção civil e, quando Rana era pequeno, ganhava 300 tacas (moeda oficial do Bangladesh), menos de três euros. Atualmente, ganha 500 tacas - perto de cinco euros - mas “cerca de 300 são para a comida”.

- E tinham dinheiro suficiente para comer?

- Não… O meu pai não conseguia comprar comida suficiente para os cinco porque, às vezes, não tinha trabalho.

- E como é que faziam? Comiam quantas vezes por dia?

- Comíamos duas vezes por dia… Às vezes, uma - confidencia, visivelmente perturbado com a recordação. Não consigo falar mais! - exclama, enquanto põe a mão à frente da cara como se quisesse tapar as emoções.


Rana é visivelmente um rapaz sensível. Ao longo da nossa conversa, diz várias vezes que, perante uma ou outra situação, ficou “de coração partido”. Então, regressemos às memórias boas. Foi quando Maria Conceição, responsável pela Fundação Maria Cristina (MCF), foi visitar o bairro de lata onde Rana vivia que a sua vida começou a mudar. A família ouviu falar no Dhaka Project - a escola que Maria tinha fundado para apoiar as crianças que não conseguiam ir à escola por dificuldades financeiras dos pais - e incentivou-o a inscrever.

- Os teus pais inscreveram-te na escola da MCF?

- Nessa altura, a minha família nem sequer sabia assinar o nome ou conhecia os números. Eram analfabetos, não sabiam como ajudar-me nem lidar com a burocracia. Mas eu, apesar de ser uma criança, já sabia as letras e os números. Outros familiares foram comigo e apoiaram-me porque eu tinha muito medo!

- Tinhas medo de quê?

- Havia muita gente e eu era uma criança. Não conhecia ninguém. Não sabia o que dizer, o que fazer.

- E depois, como é que correu?

- Havia cerca de 1000 alunos a tentar entrar na escola da MCF. Eu pensava que não ia entrar porque havia muitos candidatos.

- E como reagiste quando soubeste que tinhas entrado?

- Senti-me com sorte quando soube que tinha sido admitido. Eu nem sonhava que pudesse ser aceite numa escola como aquela!



O primeiro dia de escola “foi memorável”. Lembra-se de cada detalhe, desde o segurança que estava ao portão, as palavras que trocaram, a recepção por parte da diretora, as caras familiares dos amigos do bairro de lata… e a primeira decepção, o primeiro momento “de coração partido”.


- Na altura, fiz logo um amigo. Éramos muito próximos. Só que a diretora separou-nos e eu fiquei muito triste. Mas, no ano seguinte, voltámos a estar juntos na mesma sala!


A sala de aula era “muito grande, moderna, com um quadro de giz e uma pessoa por mesa”. Os professores eram “muito amigos”.

- Às vezes, sentia que era filho deles” - partilha Rana, com os olhos a marejar de saudades.


Mas a melhor parte era… o pequeno-almoço.

- Fiquei muito feliz quando nos deram pequeno-almoço! De manhã, em casa, não comia nada! Mas comia na escola!, exclama com um sorriso aberto.



Quando a escola da Fundação Maria Cristina (MCF) fechou por divergências com a equipa local e em resultado da crise financeira internacional, Rana, tal como muitos outros alunos, ficou à mercê do seu próprio destino. Mas soube manter o rumo. Uma professora da MCF continuou a dar aulas a várias crianças e dizia-lhes para “não desistir, ter esperança no futuro e acreditar que a Maria ia voltar”. E, após um ano, voltou.

- A Maria regressou e tomou conta de nós como se fosse nossa mãe. Ela luta por nós como ninguém faz. Eu devo à Maria o que sou. A minha família fez-me nascer, mas a pessoa que eu sou devo a ela. Tenho educação, sei o que é respeito e posso ter um futuro melhor graças à Maria. Ela é um anjo.


De tal forma, Maria tomou conta deles “como uma mãe” que, a dada altura, tive que esclarecer…

- Mom says… (A mãe diz…)

- Your mom? (A tua mãe?)

- No. I call Maria mom. (Não. Eu chamo “mãe” à Maria)


Rana tem por Maria Conceição um misto de carinho, admiração, respeito e gratidão.


- A Maria gasta milhares [de dólares] connosco e não nos pede nada em troca. Se desperdiçarmos esta oportunidade, vamos partir-lhe o coração. Sem esta oportunidade, eu estaria como muitos outros rapazes, a trabalhar em fábricas. Tenho de provar que estou à altura.



Rana está no 12º ano e gostava de estudar Engenharia Mecânica porque tem um fascínio por “arranjar coisas”.

- Se o meu telefone avaria, eu abro e conserto. Gosto de tudo o que é elétrico e mecânico.


Sabe que quer continuar a estudar, mas ainda não escolheu a universidade. Talvez no estrangeiro, “se tiver essa oportunidade”, ou em Daca. Para já, aguarda que as suas duas “mães” - a biológica e Maria - lhe definam o rumo a seguir. No entanto, sabe, com certeza, que sem dinheiro não poderá continuar a educação.

- Ninguém me vai ensinar se eu não tiver dinheiro. Se eu arranjar um patrocinador, posso continuar a estudar.



Quanto a sonhos, parecem ser pouco ambiciosos. Ou talvez na medida certa para quem nunca teve nada e não sabe ainda o que pode alcançar.

- Os meus pais trouxeram-me ao mundo, fazem muitas coisa por mim, são a minha família, tenho de ajudá-los. Quando for bem sucedido, sonho dar-lhes o meu primeiro salário. Depois, sou um slum boy (um rapaz do bairro de lata), não tenho casa. Por isso, quero construir uma casa para a minha família. E depois quero fazer o que faz a Maria. Se eu ganhar 100, quero dar 30 à minha família, fico com 20 e dou 50 aos mais necessitados.


Desafio-o a sonhar um pouco mais.

- Onde te vês daqui a 10 anos? Como te imaginas?

- Daqui a 10 anos… vejo-me como tu ou como a Maria. Ela lutou muito, aprendi com ela a nunca desistir, a tentar sempre. É o meu ídolo.


E talvez tu, Rana, um dia, sejas o ídolo de alguém.

 

Esta história é verídica e relata a vida de Rana contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 5 de abril de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho realizado para a Fundação Maria Cristina.

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