Em todas as entrevistas, faço uma pergunta simples, básica que, muitas vezes, parece ser de resposta difícil. Cheguei a pensar que poderia ser algum problema de comunicação, algo que se perdia na tradução, ou até uma diferença cultural. Mas não.
- Que idade tens?
- Eu… ?21 anos.
- Ok.
- Ah não! Tenho 18.
- Como assim? Tens 21 ou 18?
- Tenho 21! Mas, pelo registo do Bangladesh, tenho 18.
Aos olhos de um ocidental, de um cidadão ou cidadã de um país civilizado, isto seria impensável. Queixamo-nos da burocracia, do tempo que demora a resolver tanta coisa… mas nada se compara com isto. O mesmo tipo de resposta - hesitante, com dúvidas - surge quando lhes pergunto a data de nascimento. Pensam, fazem contas de cabeça, olham para cima e à volta à procura de uma resposta, como quem procura o lado certo do cérebro… e quase sempre atiram dias e meses como quem tenta adivinhar.
Rony acabou por escolher ficar algures no meio: para esta entrevista, neste momento, tem 19 anos. Nasceu numa aldeia, algures no Bangladesh, e quando tento precisar a localização, responde:
- O Bangladesh tem 64 distritos. É difícil explicar.
O que importa, na realidade, é que, na sua terra natal “a vida não era boa nem má”. Talvez, por isso, os pais resolveram fazer o mesmo que tantas outras famílias: ir para a capital Daca à procura de melhores oportunidades. Mas também aí tinham “condições de vida miseráveis”. Viviam nos famosos “slums”, os bairros de lata do Bangladesh, “todos juntos num quarto” e partilhavam cozinha e casa-de-banho com outras famílias.
Rony era bebé quando foi para Daca com a família: os pais e três irmãos mais velhos - uma rapariga e dois rapazes. Mais tarde, nasceu outra menina. Na tentativa de lhe resgatar a infância, pergunto pela primeira memória:
- A primeira memória de infância é a morte do meu pai. Morreu em 2007 devido a cancro nos pulmões. Eu tinha 6 anos. Era muito pequeno. Foi o pior dia da minha vida.
- O que te lembras do teu pai?, pergunto, tentando avivar-lhe as lembranças
- Lembro-me que era muito boa pessoa, diz enquanto esboça um sorriso. Só queria tomar conta de nós, de todos os filhos. Queria ganhar mais dinheiro para nos fazer felizes.
- Que memórias tens dele? Costumava brincar contigo? Lembras-te de algum dia especial?- Lembro-me de uma coisa… Num festival muçulmano - há dois por ano - ele foi comprar roupa para mim. Eram calças de ganga e uma t-shirt vermelha.. Eu estava tão feliz!
- Ainda tens essa roupa?
- (Risos) Não! Já passaram muitos anos!
Com a morte do pai, as condições de vida - já miseráveis - agravaram-se.
- Depois da morte do meu pai, os meus dois irmãos mais velhos e a minha irmã trabalhavam. Passados alguns anos, a minha irmã teve de casar. A minha mãe também trabalhava muito.
- E conseguiam sobreviver?
- Tínhamos pouco dinheiro. Não vivíamos nem morríamos. Os dias iam passando.
- Conseguiam pagar a renda da casa, comprar comida…?
- A renda de casa era 2000 tacas [perto de 20 euros]. E o salário de um trabalhador de uma fábrica era 200, 250 tacas [entre 2 a 2,5 euros]. Um irmão pagava a renda, o outro comprava a comida.
- E a comida era suficiente para todos?
- Às vezes, não tínhamos comida suficiente. Fazíamos uma refeição por dia, às vezes, duas. De alguma forma, os dias passavam. Mas era miserável.
No mesmo ano da morte do pai, alguns meses depois, Rony viu uma luz de esperança ao fundo do túnel: a possibilidade de entrar na escola da Fundação Maria Cristina (MCF).
- Muita gente estava a candidatar-se. Foi muito difícil para mim! A minha mãe esforçou-se muito para que eu fosse admitido. A MCF era um sonho!
- Como foi o primeiro dia?
- Estava tão nervoso! (sorri) Tantos alunos! E eu nunca tinha ouvido uma palavra de inglês! Pensava ‘O que será que estão a dizer?’ Mas, passados um ou dois dias, foi mais normal. Os professores eram muito carinhosos. Gostavam muito de nós.
- E como era a escola?
- Oh meu Deus!, exclama, entusiasmado e saudosista. Que educação fantástica, que ambiente fantástico!
Além disso, a MCF providenciava “o pequeno-almoço, o almoço e refeições” para levarem para casa que “ajudavam muito” as famílias carenciadas.
Tal como milhares de outros alunos, com o fecho da escola da MCF, Rony aceitou a ajuda de algumas professoras e teve aulas “num campo aberto” onde as crianças ficavam “sentadas no chão”. Com o regresso de Maria Conceição ao Bangladesh, veio também a oportunidade de voltar a estudar, em inglês, desta vez, numa escola privada.
- O ambiente era maravilhoso! Havia 20 ou 25 alunos por sala. A escola tinha tudo! Nós éramos muito pobres, nunca teríamos conseguido lá entrar. Era mesmo muito cara! Mas ninguém nos rejeitou por sermos pobres. Foram muito amigáveis. Os professores ajudavam-nos ainda mais do que aos outros alunos. Perguntavam, até, se precisávamos de aulas extra.
Rony gosta de Física e de Química e foi, praticamente desde o início, “o melhor ou o segundo melhor aluno da turma”. E continua a destacar-se:
- Agora, tive nota máxima em dois exames nacionais. Foi uma grande conquista!
No futuro, planeia “ir para uma boa Universidade”.
- O meu sonho e o da minha família é eu ser Engenheiro. Querem que eu chegue longe! E eu quero fazê-los felizes tal como eles se esforçaram por mim. Mas preciso de apoio. Preciso desesperadamente de um patrocinador. Sou tão bom aluno… acho que mereço ter esse apoio!
Actualmente, a família tem sete elementos. Além do pai, a irmã mais nova também morreu. Os irmãos, que trabalhavam para ganhar o sustento da família, tornaram-se os “heróis” de Rony. Entretanto, casaram e tiveram filhos, mas continuam a viver todos juntos. A mãe já não trabalha porque “é velha, tem quase 50 anos”. De uma maneira geral, “a vida é um pouco melhor do que antes”. Mas, às vezes, sobretudo durante uma pandemia, “é difícil comprar comida para todos” porque “o preço das matérias-primas aumentou muito”.
Peço-lhe para perspectivar o futuro, daqui a 10 anos.
- Daqui a 10 anos, quero estar numa posição em que a minha família esteja feliz. Quero que a minha mãe diga “o meu filho está no estrangeiro a ganhar dinheiro”.
Já a terminar a nossa conversa, depois das habituais despedidas e de lhe desejar boa sorte, ouço o meu nome:
- Marta..!
- Sim…?
- Posso pedir-te uma coisa?
- Claro! Se eu puder ajudar…
- Por favor, reza por mim.
Assim farei, Rony.
Esta história é verídica e relata a vida de Rony contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 6 de abril de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho realizado para a Fundação Maria Cristina.
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