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  • Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistoria

“Quando estava no 7º ano, em 2016, antes do exame final, tive um acidente. Fui atropelada por um carro, que me bateu na cabeça do lado direito. Só me lembro de acordar no Hospital com a minha mãe e uma das minhas professoras. Disseram-me na altura que a minha situação era grave. Não conseguia abrir os olhos nem falar. Mas, como tinha de fazer o exame final, fiquei só um dia internada e saí do Hospital. Após 3 anos, quando estava no 10º ano, antes de outro exame, não consegui ir à escola durante 3 meses e fiquei em casa. Tinha muitas dores de cabeça, não conseguia estar sentada por mais de 10 minutos, estava sempre na cama. Mas eu lutei com as minhas dores de cabeça, fiz o exame, passei e agora estou a sonhar com o meu futuro”.



Rumi tem 19 anos. Nasceu a 19 de Agosto de 2001, mas só foi registada a 28 de Dezembro. Fala inglês com desenvoltura e parece ter os seus objetivos muito bem definidos. A memória que tem da infância “não é boa”. Vivia com a família - mãe, pai e três irmãs - “num quarto só com uma cama” num bairro de lata de Daca. Os pais dormiam no chão. Ambos trabalhavam, mas “o que ganhavam não era suficiente” para sustentar a família. O pai puxava riquexós e a mãe limpava casas, de onde trazia a comida que lhe davam.



A irmã mais velha conheceu Maria Conceição e começou a frequentar a escola da Fundação Maria Cristina (MCF). Assim, abriu caminho para as mais novas. Após alguns meses, foi a vez de Rumi.

- Como era a escola da MCF? De que te lembras?

- Quando estávamos na MCF tínhamos a melhor educação de sempre!

- A tua irmã, de certa forma, abriu caminho para vocês… O que é que ela contava sobre a escola?

- A minha irmã mais velha divertia-se muito! Estava a aprender inglês, ia a visitas de estudo, tomava pequeno-almoço e almoço na escola

- E contigo, como é que correu?

- Os professores ensinavam-nos tudo - desde a perguntar se podíamos entrar ou se podíamos ir à casa-de-banho - a escrever, como comer, etc.



Ao início, Rumi confessa que “estava sempre calada” porque “não sabia ler nem escrever” e “tinha medo de falar com os outros”. Aos poucos, foi-se tornando “boa aluna”. As disciplinas preferidas eram Inglês e Matemática. Hoje, continua a gostar de Inglês, mas de Matemática nem tanto.

A dada altura, toda a família tinha ligação à MCF, incluindo os pais. Maria Conceição arranjou um trabalho como segurança para o pai de Rumi e a mãe, depois do nascimento da filha mais nova, foi fazer um curso de costura.

Com o fecho da escola da MCF, Rumi ficou sem rumo durante um ano. Mas, com o regresso de Maria Conceição ao Bangladesh, pode voltar a estudar numa escola privada.

- A escola privada era boa, mas algumas professoras tratavam-nos mal.

- Como assim?

- Separavam os estudantes da MCF dos restantes. Aqueles que tinham dinheiro e educação ficavam separados dos que vinham dos ‘slums'. Faziam comparações entre nós. Chamavam-nos ‘slum child’ e diziam que não podíamos fazer isto ou aquilo. Mas, se falassem connosco com gentileza, nós podíamos fazer tudo. Nós tínhamos educação. A Maria tinha-nos dado educação.

- E como é que essa diferenciação te fazia sentir?

- Sentia-me muito mal. Muitas vezes, chorei. Somos todos seres humanos. Não era forma de nos tratar. O dinheiro não significa tudo nem é sinónimo de educação. Na altura, disse isto à Maria. Quando estava no 11º ano aconteceu-me outra vez, mas agora posso responder diretamente porque já não sou uma criança.



Tal como outros estudantes da MCF, Rumi refere-se a Maria Conceição como “mom”: mãe.

- A “mom” também não gosta disto. Somos “mom childs” (somos filhos dela)

- Mom? Referes-te a Maria Conceição?

- (Sorri) Sim. Tenho duas mães: uma biológica, a outra enviada por Deus.


Apesar dos desafios, a vida parecia estar encaminhada. Até que Rumi sofreu um acidente.

- Admitiram-me num serviço de Neurologia, mas havia muitas pessoas piores do que eu. Prescreveram-me alguns medicamentos, disseram para não gritar, para não estar exposta a ruído nem a pressões senão podia ter mais dores de cabeça. Às vezes, ainda tenho dores e também não me controlo.

- Não te controlas em que sentido?

- Choro com dores de cabeça.


É uma dor que a persegue, mas com a qual teve de aprender a lidar para prosseguir: com a vida e com os estudos. Actualmente, está no Dubai com a mãe e com as irmãs.

- A minha mãe e as minhas irmãs chegaram três meses antes. Uma das minhas irmãs está em telescola. A Maria quer pôr as minhas irmãs na escola no Dubai, mas ainda não temos vistos. A minha mãe veio para tomar conta das minhas irmãs.

- E como é que vocês pagam as contas aqui no Dubai?

- A Maria alugou um apartamento para nós, dá-nos roupa, comida, tudo. E nós fazemos o estágio para juntar dinheiro.



O objetivo é “juntar dinheiro para a Universidade” em Portugal, “aprender a trabalhar num escritório” e “conviver com pessoas de outros países”. Rumi sabe que quer ser “uma mulher de negócios bem sucedida e fazer muito dinheiro”.

- E com esse dinheiro quero construir lares para idosos, para pessoas mais velhas que não têm casas.

- Porquê?

- Em todos os países, quando não gostam dos pais, abandonam-nos e mandam-nos embora de casa. Não os alimentam, não lhes dão abrigo, medicamentos, roupas. Quero fazer algo pelos idosos. Toda a gente morre um dia, mas, antes de morrerem, quero que tenham qualidade de vida.

- Mas o que é que te inspira a querer ajudar estas pessoas?

- Eu vi isto acontecer com alguns vizinhos. Expulsaram os pais de casa. E eu senti-me muito mal com estas situações. Também já vi muitos videos no Youtube com situações destas pelo mundo inteiro.



Depois de mudar a vida dos mais velhos, sonha mudar a dos mais novos.

- Gostava de ser uma inspiração para outras meninas no Bangladesh. No Bangladesh, ainda há muitas famílias que obrigam as meninas a casar aos 11, 12, 13 anos, assim que têm o período. É péssimo.

- Como gostavas de inspirá-las? O que gostavas de mudar no teu país?

- Gostava de mudar os casamentos, gostava de dar educação às crianças como a Maria nos deu, gostava de mudar a vida delas como a Maria mudou a nossa. Se as crianças tiverem educação, a pobreza desaparece do país.


Rumi sentiu o gosto da liberdade e não quer largá-lo mais.

- No Bangladesh, não temos liberdade, não podemos fazer nada à vontade, não podemos andar de noite sozinhas, não somos independentes. No Dubai podemos ir a todo o lado. É muito seguro. Ninguém nos perturba. Ninguém nos pergunta porque estamos na rua ou porque estamos a trabalhar. No Bangladesh, se estamos a trabalhar, perguntam-nos porque estamos a trabalhar. Não somos independentes. Eu adoro o Dubai. Aqui toda a gente pode viver a sua vida à vontade, ninguém pergunta nada.

- E pensas casar um dia, por exemplo?

- Não penso em casamento. Quero viajar pelo mundo inteiro. Quero ver outras pessoas, outros países, outras culturas, quero ver tudo.


Rumi tem o mundo à sua espera. Apenas precisa de conseguir manter as asas da liberdade.

 

Esta história é verídica e relata a vida de Rumi contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 19 de abril de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho realizado para a Fundação Maria Cristina.

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