Há mimo que estraga. E mimo que engrandece. Daquele que nos faz sentir tão amadas, que encaramos a vida como se fôssemos capazes de tudo, como se não houvesse impossíveis. Daquele que nos preenche tanto que, mesmo sozinhas, somos inteiras. A Maria é assim. Filha única, nasceu quando a mãe tinha 28 anos e o pai 50. Não conseguiram engravidar durante muito tempo, devido a um problema de saúde do pai. Até que, um dia, houve um milagre. E o nome ficou: Maria dos Milagres.
Natural de Entre os Rios, uma província a 500 quilómetros de Buenos Aires, na Argentina, “tinha tudo” dos pais: “Havia três revistas, na altura, para as crianças da minha idade e os meus pais compravam-me as três”, conta. A generosidade no mimo não diminuiu a dose de exigência: era boa aluna e tinha mesmo de ser.
- Ao dar-te estudos, dou-te ferramentas para a vida. Se te deixar dinheiro no Banco, pode correr bem ou pode correr mal.
O conselho é do pai e ela levou-o muito a sério. Para a vida. Começou a ter aulas de inglês aos quatro anos de idade, o que – sublinha – “há 40 anos era muito à frente”. A partir dos sete, foi para uma escola de línguas e, no 12º ano, já dava aulas. A família chegou a receber, em casa, duas alunas de intercâmbio para que Maria aperfeiçoasse as línguas. Não se lembra de ter escolhido uma profissão. Se calhar, a profissão escolheu-a. Ainda apostou nos estudos de Comunicação Social, mas percebeu que não era por ali. Optou por aprofundar aquilo que vinha a aprender desde sempre. Em 1997, estava, mais uma vez, em Londres, a fazer um curso de inglês, quando, entre conversas supostamente banais com a mãe, sentiu que algo de estranho se passava. O curso terminou no final do mês de Janeiro. Preparava-se para seguir viagem pela Europa quando a mãe lhe pediu que regressasse a casa. O pai tinha falecido no dia 17.
- Estranhava não poder falar com o meu pai. A minha mãe dizia-me que ele estava doente, depois que tinha sido internado... Mas já tinha morrido. Muita gente ficou chateada com a minha mãe... porque eu era filha e tinha direito a saber. Mas eu percebi perfeitamente. Ela fez o que o meu pai gostaria que eu tivesse feito: terminar o curso. A última coisa que ele me disse foi: “Tens de me trazer o diploma para eu pendurar”. E eu trouxe. Teria sido muito mais fácil para a minha mãe partilhar a dor comigo.
A vida continuou, como sempre continua, independentemente do que acontece à nossa volta. Maria vivia com a mãe, tinha emprego estável, ganhava bem, mas tinha “uma vida monótona”. Em 2001, foi de férias a Itália e Portugal. Encantou-se com o mar de Cascais, com a simpatia dos portugueses, com a tranquilidade do país. Sabia a casa. No ano seguinte, voltou por dois meses. E ficou até hoje. Pediu licença sem vencimento, por um ano, nas escolas onde dava aulas, na Argentina. Sentia que, de alguma forma, tinha ali uma rede de segurança. Em Portugal, começou por servir à mesa e trabalhar na cozinha.
- Depois de estudar tanto, andei a esfregar azulejos... Ai, se o meu pai fosse vivo, morria outra vez! (risos)
De facto, aquele não era o talento de Maria – foi despedida 10 dias depois de ter começado. Passado pouco tempo, a capacidade de falar várias línguas garantiu-lhe um trabalho como recepcionista numa unidade hoteleira. No tempo que lhe restava, dava aulas de inglês. Acabou por ter uma proposta das escolas para assegurar um “horário completo” e deixou o trabalho como recepcionista. Mas a verdade é que o horário não era assim tão completo. E era preciso ocupar o tempo. Numa das visitas à mãe, na Argentina, uma retrosaria despertou-lhe a atenção. Entre missangas e berloques, resolveu comprar umas quantas peças coloridas - ainda sem saber bem o que dali poderia sair. Regressou a Portugal e, nos intervalos das aulas, passava o tempo a fazer brincos e colares. As peças conquistaram os alunos e os colegas... e foi vendendo.
- Na altura, era um complemento ao meu ordenado. Conseguia ganhar mais 200 ou 300€. Era bom. Mas não tinha capacidade para investir muito: gastava 30 ou 40€ por mês a comprar peças. Não podia gastar mais.
O regresso à Argentina deu-se mais rápido do que imaginava. A mãe estava doente. Diagnóstico: cancro. Maria largou as aulas em Portugal e ficou, ao lado da mãe, nos últimos meses. Mesmo com os olhos marejados de lágrimas, há uma certa tranquilidade na sua perda. Talvez a tranquilidade de quem sabe que, mesmo não estando ali, os nossos - os dela - estão sempre por perto. Para ocupar o tempo - e, provavelmente, o espírito – enquanto estava na Argentina, Maria agarrou-se ao colorido dos brincos e colares: produzia e enviava para Portugal. Acabou por regressar ao país que já chamava de casa e à rotina entre as aulas e a bijuteria. Até que, um dia, alguém lhe perguntou:
- Ganhas mais a vender os colares ou a dar aulas?
- A vender os colares. Mas não é uma coisa certa, ainda é instável. E não tenho capacidade para investir.
Um aluno viu no talento de Maria uma possibilidade de negócio. Confiaram um no outro e nasceu uma sociedade. Ela entrou com o coração, ele com a razão.
- Ele dava-me muito na cabeça. Eu sou muito emotiva. Ficava amiga das clientes, confidenciavam-me os problemas. Uma vez, uma cliente descobriu que tinha um problema de saúde e ligou para mim antes de contar à família. É muito bom, mas também era muito desgastante.
Desta sociedade nasceu a Pampa Mia, que é como quem diz “saudades de casa”, a casa argentina, onde nasceu, a casa da família, do aconchego. A casa dos afectos que leva para onde quer que vá. A casa foi crescendo: a Pampa voltou a ser só dela e já dá emprego a 5 pessoas.
- Não sou pessoa de deixar coisas por dizer nem arrepender-me do que fiz. Eu arrisco. E isso leva-me longe.
A Maria é assim: nasceu de um “milagre”, que se colou ao nome e talvez à vida. Ou à forma como encara a vida. Porque, mesmo com os olhos marejados de lágrimas, solta uma gargalhada e exclama: “Não chorei, pois não?”. Não, Maria. Essas lágrimas não contam. São daquelas que vale a pena chorar.
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