“Portugal é um dos países mais pobres da Europa e diziam-nos que a faculdade era numa vila. Por isso, eu pensava que podia ser parecido com o Bangladesh. Quando cheguei, vi que as pessoas conduziam carros, andavam na rua à vontade… Fiquei deslumbrado. Em Portugal, as pessoas são livres. No meu país não é assim. Depois dos 20 anos, os pais obrigam as meninas a casar, o mesmo para os rapazes quando têm 23 ou 24. E há o casamento infantil. Pessoas que não conseguem dar educação nem condições de vida, casam as filhas com 16 ou 17 anos. Só me apercebi destas diferenças quando cheguei cá. E é isto que quero para a minha vida: liberdade”.
Jahangir Udin nasceu a 1 de fevereiro de 1998 em Rangpur, no Bangladesh. Ainda muito pequeno recorda-se que o pai partiu para a capital Daca à procura de melhores condições de vida. Algum tempo depois, a família foi à procura dele, mas não quis voltar. Então, ficaram todos. Jahangir tornou-se um “slum boy”, ou seja, um rapaz do bairro de lata. Tinha quatro anos.
- Juntávamos garrafas de plástico, de alumínio, sacos e papel; separávamos e vendíamos.
Viviam “rodeados de lixo” numa casa muito pequena, numa zona densamente populada. Tinham uma cozinha e duas casas-de-banho para cerca de 50 famílias.
- Às vezes, tínhamos de fazer fornos no solo, em frente à nossa casa. Mas quando chovia era muito complicado cozinhar. A casa-de-banho era um problema. Às vezes, nem sequer conseguíamos usá-las. Tínhamos de ir a campos abertos. Não tínhamos condições sanitárias.
O pai puxava riquexós, a mãe era empregada em casa de famílias mais abastadas. O que ganhavam não era suficiente para sustentarem uma família com três filhos: Jahangir e dois irmãos mais novos. O “normal” era fazerem uma refeição por dia.
- Não tínhamos comida. Dificilmente os meus pais conseguiam garantir duas refeições por dia. E, se o meu pai não tivesse trabalho, passávamos fome.
Enquanto crescia “via as outras crianças a irem para a escola”, mas ele não podia. O pai tentou, por várias vezes, inscrevê-lo, mas, se o dinheiro não chegava para a comida, ainda menos havia para pagar propinas, por mais baixas que fossem.
Em 2006, conheceram Maria Conceição e a vida começou a mudar. O pai de Jahangir passou a trabalhar numa pequena mercearia dentro da escola da Fundação Maria Cristina (MCF) e, mais tarde, como segurança. Jahangir e os irmãos começaram a frequentar a escola.
- No primeiro dia na MCF estava muito feliz e entusiasmado. Finalmente ia estudar! Foi nesse dia que comecei a sonhar. Pensei que seria um grande Engenheiro.
Mas, para uma criança habituada à vida no bairro de lata, a adaptação nem sempre é fácil.
- No primeiro dia, chorei porque não sabia nada e não conhecia ninguém nem os professores. Queria ir para ao pé dos meus pais. E, às vezes, não queria ir para a escola, mas os meus pais obrigavam-me. Se eu não quisesse ir, o meu pai batia-me. Às vezes, a Maria ia lá a casa ver se estava tudo bem e se eu ia à escola. Quando comecei a gostar já era muito bom.
- E como é que começaste a gostar?
- Os professores eram muito gentis, tratavam-me muito bem. A Maria dava-nos pequenas prendas - como chocolates e brinquedos - para nos motivar a ir à escola. Também recebíamos prémios se tivéssemos 100% de presenças. Até ao 7º ano, recebi prémios todos os anos.
Além da aulas, através da MCF, a família de Jahangir recebia comida, roupa, medicamentos - tudo o que fosse essencial para terem uma vida melhor. E a educação não era só para as crianças:
- A Maria abriu uma organização, uma espécie de escola para os pais, para aprenderem inglês. O meu pai foi para esta escola. Depois teve uma entrevista na Emirates para trabalhar no Dubai e foi selecionado. Foi uma reviravolta na nossa vida!
A partir daqui, “a pobreza começou a desaparecer” e a família começou a ter melhores condições de vida.
Quando a escola da MCF fechou, devido à má gestão da equipa local e em resultado da crise financeira internacional, Jahangir, tal como outras crianças, continuou a ter aulas graças à boa vontade de uma professora, que se voluntariou para fazê-lo.
- Mas tínhamos aulas no chão. E se estivesse a chover não conseguíamos ter aulas porque estávamos num campo aberto.
Cerca de um ano depois, Maria Conceição conseguiu arranjar financiamento para pôr as crianças a estudar num colégio privado, no Bangladesh, de forma a garantir aulas em inglês.
- É uma escola onde é muito difícil ser admitido. Só os ricos vão para lá. Fiquei muito feliz quando soube.
Ao início, a adaptação à escola não foi fácil porque alguns professores tentavam separar os “meninos ricos” dos “meninos do bairro de lata”. Mas estes entraves foram ultrapassados e Jahangir conquistou os professores porque “estava sempre sossegado nas aulas”. Concluiu o 12º ano em 2018 até que Maria Conceição começou a incutir-lhe interesse pela Universidade.
- A Maria veio ao Bangladesh visitar-nos e falámos sobre ir para a Universidade. Todos diziam “quero ser engenheiro”, “piloto”, “homem de negócios”. Então a Maria fez um vídeo connosco a pedir ajuda e o Instituto Politécnico de Bragança respondeu.
No início, talvez levado pelo medo do desconhecido, Jahangir não queria sair do seu país. Mas quando viu os colegas a prosseguir os estudos, entusiasmou-se e entrou no Instituto Politécnico de Bragança na segunda fase de acesso. Mas pela frente tinha mais um obstáculo para ultrapassar: obter o visto.
- Não temos embaixada portuguesa no Bangladesh. Por isso, não tínhamos forma de obter visto. Tivemos de ir para a India para tratar da burocracia. Só aceitam duas candidaturas de asiáticos em cada 100. Eu estava assustado porque era a primeira vez que estava fora do meu país. Ficámos lá mais de um mês para tentar obter o visto. Foi muito duro.
Chegou a Portugal em 2019 e ficou “maravilhado”. Portugal - o país mais pobre da Europa - não tinha nada de pobre ao pé do Bangladesh.
- Quando entrei na universidade e fui à primeira aula fiquei encantado só de ver as salas de aula!
Jahangir está no segundo ano de International Business Management e tem o estatuto de trabalhador-estudante: trabalha a tempo inteiro e tem aulas à noite. Garante que, para já, o que ganha é suficiente para pagar as suas despesas. A família está “bem”, muito melhor do que noutros tempos.
- A minha família vive na nossa vila, os meus irmãos vão para a escola: um está no 11º ano, o outro no 9º. A minha mãe é dona de casa e o meu pai continua a trabalhar na Emirates no Dubai. Graças à Maria, tudo melhorou.
E o agradecimento de Jahangir e da família transformou-se em necessidade de retribuir.
- O meu pai abriu uma escola na nossa aldeia para crianças como nós. É tudo gratuito. Quando o meu pai teve a ideia, partilhou-a com a Maria, ela gostou muito, motivou-o e ofereceu ajuda com os patrocinadores. Ainda hoje ela ajuda. Quando o meu pai vai ao Bangladesh vai sempre à escola e eu costumo trabalhar lá com ele durante as minhas férias.
Quando terminar os estudos, Jahangir quer “trabalhar na Alemanha, Londres ou Dubai porque pagam melhor”. Ambiciona abrir uma empresa de transportes, torná-la numa multinacional. Só depois regressa ao Bangladesh.
- Quero regressar ao Bangladesh porque amo o meu país natal. Mas antes quero estabilizar a minha vida, concretizar o meu sonho de ter uma grande multinacional de transportes e uma fundação como a MCF. E, quando regressar ao Bangladesh, quero ajudar as crianças como eu. Quero mudar a vida deles também.
Jahangir sabe que teve uma sorte que muitas crianças não têm.
- Se nunca tivesse conhecido a Maria estava casado,com filhos, cheio de problemas para conseguir sobreviver. Trabalhava numa fábrica ou puxava riquexós como o meu pai e vivia num bairro de lata.Se calhar, era toxicodependente. Conhecer a Maria mudou a nossa vida.
Mas a sorte também dá muito trabalho. Jahangir esforçou-se e dedicou-se. E a motivação que lhe foi transmitida por Maria Conceição e pelo pai foram fundamentais para chegar onde está hoje e para acreditar que pode chegar ainda mais longe.
- A Maria é um exemplo para mim. Sempre me motivou. E o meu pai também.
Quando ele percebeu que a vida era diferente no Dubai, motivava-me ainda mais: dizia que a vida dá segundas oportunidades. Por isso, sei que nunca devemos desistir. Nada é impossível. Podemos fazer do impossível possível. Onde quer que estejamos.
A Maria é um exemplo para Jahangir. E ele é também um exemplo para todos nós.
Esta história é verídica e relata a vida de Jahangir, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 29 de janeiro de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.
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