top of page
Buscar
  • Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistória

“A nossa vida no bairro de lata não era boa. Tínhamos duas casas-de-banho para cerca de 15 ou 20 famílias. Uma família tem, em média, quatro ou cinco elementos. Portanto, eram duas casas-de-banho para 75 ou 100 pessoas. Tínhamos lixo por todo o lado, fazia uma espécie de montanha de lixo. Além disso, havia, apenas, uma torneira com água potável e dois fornos para cozinhar para todas estas famílias.”

Rita Akter nasceu a 15 de abril de 1996 no Bangladesh. Rita é um nome comum no Bangladesh. E só muitos anos mais tarde é que os pais da menina perceberam que também é um nome português.


Rita é a terceira de quatro filhos: três meninas e um rapaz. O pai, agricultor, era o único da família com um rendimento fixo: 400 a 500 tacas por dia, cerca de 5 ou 6 euros. O irmão fazia uns trabalhos esporádicos como carpinteiro. A mãe, por ter problemas de coração, não podia trabalhar. Faziam três refeições por dia, à base de lentilhas e arroz.

Rita frequentou uma escola do Estado do 1º ao 3º ano, mas “não se aprendia muito”. Com 10 anos, conheceu Maria Conceição, fundadora da Fundação Maria Cristina (MCF), através do irmão, contratado para fazer uns trabalhos de carpintaria. O irmão sugeriu que Rita fosse estudar para a MCF, para que pudesse aprender em inglês, mas, inicialmente, a mãe “teve medo” e “não gostou” da ideia. Mais tarde, quando percebeu que “Maria era de confiança”, aceitou. Já Rita ficou encantada à primeira vista:

- No nosso país, a maioria das pessoas é mais escura e ela era diferente, mais clara. Parecia um anjo. A minha vida começou a mudar aí.




Rita começou o 4º ano na MCF e sentia-se “no céu”.


- Vi, pela primeira vez, computadores e uma biblioteca. Tínhamos aulas extra-curriculares onde podíamos dançar e cantar. Também fui ao dentista pela primeira vez. Estava no céu!


Apesar dos estudos correrem bem, a família de Rita era já constituída por cinco pessoas e ela, por ser menina, começava a ser vista como “um fardo”:

- Quando estava no 8º ano, com 14 ou 15 anos, os meus pais queriam que eu me casasse porque o meu pai era o único que ganhava dinheiro e tinha de nos sustentar a todos.

- E como é que tu reagiste? O que é que disseste aos teus pais?, pergunto.

- Disse que não queria casar e, se me obrigassem, saía de casa para sempre (risos)

- Mas com quem ias casar?

- Não sei com quem me iam casar. Acho que ainda não tinham escolhido o noivo. Mas estavam a tentar convencer-me…

- E tu..? O que fizeste depois?

- Eu queria continuar a estudar, queria ter uma vida diferente da minha irmã. Por isso, falei com a Maria. Ela disse aos meus pais que pagava tudo - a renda, a escola, a comida - desde que eu não casasse. Então, a minha família desistiu do casamento.


Rita continuou os estudos até que, quando estava no 10º ano, a escola da MCF fechou devido a problemas com a equipa local que estava a gerir e em resultado da crise financeira internacional. Dois anos mais tarde, Maria Conceição conseguiu regressar ao Bangladesh e arranjou financiamento para garantir a educação de várias crianças num colégio privado, com ensino em inglês.


- O colégio é um dos mais conhecidos no nosso país. Todos os ricos estudavam lá. Quando entrei, senti-me muito sortuda por poder estudar com eles. Nunca pensei ter tudo isto na minha vida. Hoje consigo falar inglês e era o meu sonho. Estou muito grata à Maria. Foi graças a ela que pude estar aqui.


Rita terminou o 12º ano em 2016 e começou a trabalhar na área de vendas, no Bangladesh. Mas, às vezes, “havia problemas”:


- Tinha de ouvir muitas coisas dos meus vizinhos e até da família. Diziam: “Está a ficar velha, deviam casá-la”. No Bangladesh, uma menina com 20 anos é velha.

- Imagina eu que tenho quase 40…

- Não é imaginável, no nosso país, ter 40 anos e não ser casada.




A educação tinha-lhe aberto os horizontes e mostrado que o mundo podia ser mais e melhor do que a realidade que conhecia na sua terra natal. Por isso, continuava a sonhar. A oportunidade surgiu dois anos depois, mais uma vez, através de Maria Conceição: Rita chegou a Portugal em Fevereiro de 2019 para continuar os estudos.


- Como é que te sentiste quando chegaste?

- (sorri) Foi a primeira vez que saí do Bangladesh… Era um sonho! Cheguei a Portugal por volta das 21h ou 21h30 e estava tanto frio! Eu estava a tremer, mas estava muito feliz. No segundo dia, quando acordei, as folhas estavam a cair das árvores, eram vermelhas - tal como costumava ver nos filmes - nunca tinha visto na vida real! Estava em Bragança e, quando abri a janela, vi que estava a nevar… Fiquei muito entusiasmada e liguei à minha família a contar!

- E como era a casa onde ficaste?

- A casa era como um palácio para mim…! É incrível pensar onde eu costumava viver e onde vivo agora…


Em Bragança, viveu com estudantes internacionais e, numa primeira fase, foi colocada numa casa com rapazes, algo que não é confortável na cultura muçulmana:


- Somos muçulmanas, por isso, evitamos os homens. Nós vivíamos num abrigo para estudantes, eles não sabiam desta questão cultural. Havia outra rapariga lá em casa, mas eu pedi para mudar de apartamento.

- Para onde foste a seguir?

- Fui para outro apartamento com quatro raparigas, duas de Marrocos e outra do Bangladesh. Era muito giro viver com elas porque aprendíamos a fazer outros pratos típicos. Partilhávamos os nossos sentimentos, as nossas culturas. E tínhamos amigos de Portugal, do Paquistão, do Brasil…


Rita está a estudar International Business Management no Instituto Politécnico de Bragança. Em simultâneo, trabalha numa cadeia de fast-food e está a aprender português.


- Quando estava no colégio queria ser hospedeira de bordo, inspirada pela Maria. Nessa altura, fui a uma entrevista de trabalho para ser hospedeira e disseram-me que, se eu aprendesse português, depois do curso, contratavam-me.

- E é isso que queres fazer?

- Também quero ter um negócio ou gerir uma grande empresa!, responde, sorridente.

- Que tipo de negócio?

- No meu país, as mulheres fazem muitas coisas à mão - como cobertores, por exemplo - e eu gostava de exportá-los.


Actualmente, Rita consegue pagar os estudos, a renda, a alimentação e “às vezes, até poupar”. A irmã mais nova estuda numa escola pública, no Bangladesh, e é Rita quem paga as despesas.


- Como é que consegues suportar todas estas despesas? Há alguns colegas teus que também vieram para Portugal, estão a trabalhar e, mesmo assim, não conseguem…

- Quando chegámos a Portugal, fiz um semestre em Bragança e, no Verão, fui fazer um estágio no Dubai. Consegui ganhar mais de dois mil euros e poupar. Quando regressei a Portugal, tinha esse suporte. Mas a maioria dos meus amigos teve de pedir empréstimos porque nem todos tivemos a mesma oportunidade.



Enquanto esteve no Dubai, Rita também vendeu bijuteria, livros e conseguiu angariar algum financiamento para os seus estudos. O esforço aliado à veia empreendedora, deu resultado e fez com que se destacasse de vários colegas, que passam mais dificuldades. Quando lhe pergunto pelo futuro, fica pensativa e, com um ar sonhador e sorridente, vai mais além de desejar um boa vida para si e para a sua família:

- Gostava de mudar o sistema educativo do meu país. Porque no privado temos uma boa educação, na escola pública não. Além disso, gostava de ter um orfanato porque, no Bangladesh, há muitas meninas como eu. Quero fazer alguma coisa por elas. Não quero que tenham a mesma vida que eu tive na infância.


Em tempos, foi vista como um “fardo” pela família. Mas hoje muita coisa mudou:


- Eu sou a única pessoa da minha família e da zona em que eu vivia que teve educação. Mais ninguém. Hoje em dia, se eu disser alguma coisa, eles ouvem, respeitam-me. Têm orgulho em mim.

- E como é que isso te faz sentir? Tendo em conta a vida que tens aqui em Portugal, o respeito da tua família…

- É bom poder ter opinião, fazer escolhas, decidir o que quero e não quero… Sinto-me uma mulher independente porque não preciso de apoio de ninguém e ainda apoio a minha família.


Parece óbvio aqui na Europa. Parece natural aos olhos dos ocidentais. Mas, infelizmente, ainda não é. Porque ainda há muito mundo desigual. E, em alguns países, culturas ou realidades, nos pratos da balança, ainda pesam mais os que contribuem para as injustiças do que os que tentam combatê-las. Se quiser e puder ajudar a equilibrar as desigualdades, informe-se sobre a Fundação Maria Cristina (MCF) no site, Facebook ou Instagram.


Esta história é verídica e relata a vida de Rita, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 29 de janeiro de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.

 

119 visualizações

Posts recentes

Ver tudo

Deseja adicionar um comentário?

bottom of page