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  • Foto do escritorMarta Rangel

#todaagentetemumahistoria

“Lembro-me de ser muito pequeno e sentir fome. Vi a minha mãe ao fogão e pensei que estava a cozinhar. Pedi-lhe comida. Ela disse-me para ir dormir e que me acordava quando o jantar estivesse pronto. Nunca acordou. Só anos mais tarde soube que ela não estava a cozinhar, mas apenas a ferver água. E o meu irmão, com 8 anos, ia chegar do trabalho com um quilo de farinha para juntar à água e podermos comer alguma coisa”.

Milon não tem só uma história para contar. Ele é a própria história: de resiliência, determinação, coragem, luta. De alguém que quis fugir da pobreza extrema e correu atrás de todas as oportunidades, desde as mais pequenas, desde a mais tenra idade.

Milon Mia nasceu a 23 de setembro de 1998 numa pequena aldeia, no norte do Bangladesh, chamada Coconut Village. Ele, cinco irmãos e irmãs, a mãe e o pai. Da infância, recorda “memórias muito duras”. Ainda muito pequeno, ia espreitar pela janela da escola sem saber o que era a escola. Sabia que, à hora de almoço, distribuíam biscoitos e Milon ia à procura desse mimo para ajudar a matar a fome. Foi ficando “curioso com o mundo” e os professores acolheram-no na sala de aula. Tinha apenas 4 anos.

A família de Milon

O pai mudou-se para a capital Daca à procura de trabalho e de uma vida melhor. Prometeu enviar dinheiro para a família, mas “nunca o fez”. O irmão mais velho de Milon, com apenas 8 anos, passou a ser o “homem da casa”. Teve que desistir da escola e foi trabalhar: “O meu irmão era ajudante de carpinteiro. Trabalhava 12 horas por dia e, em troca, recebia um quilo de farinha para nos alimentar, a cinco pessoas. Era extremamente difícil”, conta Milon.

A mãe “fartou-se de esperar pelo pai” e resolveram mudar também para a capital. Encontraram-no “a puxar um riquexó”: “Não podia fazer mais nada porque não tinha educação”, explica Milon. Já ele, aos 5 anos, “acordava às 4 ou 5 horas da manhã, ia apanhar garrafas e latas na rua e vendia num centro de reciclagem”. Também limpava casas e, em troca, recebia “os restos da comida”. E fazia entregas numa casa de chá. Foi conhecendo a comunidade e percebeu que tinha interesse por tecnologia. Encontrou uma loja de eletrónica e ofereceu-se para trabalhar. Repito, aos 5 anos: “O trabalho não era pago, mas davam-me duas refeições: almoço e jantar. E trabalhava das 6h da manhã até às 8h ou 10h da noite. Eu ia aprender e, em casa, havia menos uma pessoa para alimentar”. Até que teve um momento que lhe mudou a vida. Ou a forma de vê-la.


- Um dia, um grupo de miúdos de uniforme apareceu na loja. Eu perguntei quem eram e explicaram-me que iam para a escola aprender. E eu percebi que havia de facto um sítio chamado escola onde íamos para aprender. No campo, não tinha percebido que era isso que acontecia naquele sítio. O meu mundo mudou naquele instante.


Chegou a casa e disse ao pai que queria estudar. Ele “percebeu que a educação é importante porque não tem”, mas “quando se é tão pobre, não é possível estudar nem na escola pública”, explica Milon: "Ele ficou de coração partido quando teve de me dizer que não era possível. Tive que voltar ao trabalho, mas não desisti”.

Regressou à loja e pediu que lhe comprassem um livro, com a promessa de pagar no futuro. Nos intervalos do trabalho, ensinavam-no a ler. Até que, um dia, o pai aparece na loja de surpresa. Por obra do acaso - ou do destino, quem sabe - tinha transportado um passageiro da Fundação Maria Cristina (MCF). Ouviu que ali existia educação gratuita. E levou os filhos.


- Foi um dos melhores momentos da minha vida, mas, ao mesmo tempo, um dos mais tristes. Eu entrei, mas o meu irmão não porque não sabia o alfabeto. Era muito novo e a MCF não tinha uma pré-escola. E eu tomei a decisão de me comprometer a ser o melhor que pudesse.


Milon era “muito activo nas aulas” e em casa “estudava o tempo todo”: “O que eu adoro nas pessoas é que, quando nos esforçamos e trabalhamos muito, ajudam-nos. Os professores interessaram-se por mim e investiram o tempo e a energia deles. Quando um professor tem 30 alunos, quer que todos aprendam. Mas quando vêem um que se esforça realmente, arranjam todas as formas para ensinar. Tornam-se melhores professores. Sou muito grato a todos os professores que conheci”.


O que aconteceu a seguir “foi uma loucura”:


- Uma vez recebi um telefonema à noite para ir à escola. Foi a primeira vez que percebi como funcionava a Fundação Maria Cristina. Só nessa altura percebi que era uma ONG. Veio um senhor do estrangeiro que trazia brinquedos, pasta de dentes, chocolates. Ele era diferente, tinha uma cor de pele diferente, falava de forma diferente. E eu percebi que havia um mundo que eu não conhecia. Abriu-me tantas possibilidades. Foi a primeira vez que comi um chocolate do estrangeiro e a primeira vez que vi dançar. Ele dançou a Macarena.


E há frases que, de repente, nos fazem pensar e repensar tudo. E perceber que é impossível comparar o incomparável: “Quando somos pobres não recebemos prendas. Só tentamos sobreviver no dia-a-dia”.


E perante a dificuldade o que é Milon faz? Cria oportunidades.

- Nesse dia, tomei uma decisão. Havia um menino que falava inglês e recebia mais chocolates e percebi que também queria aquilo. Percebi que, se aprendesse inglês, podia ter o que queria. Então, na escola, disse que, se viesse algum aluno estrangeiro, eu queria ser o primeiro a saber tudo sobre ele e a aprender com ele. Olhava para as expressões faciais, para o que os olhos mostravam, como a boca se mexia, para onde apontavam. Tornei-me muito receptivo a toda a comunicação não verbal. Um dia, passado menos de um ano, percebi que conseguia falar inglês.


Milon e os irmãos

Milon “queria ser mais”. Continua a querer. E faz por isso. Tornou-se um dos três melhores alunos da turma e começou a fazer voluntariado no Dhaka Project, criado pela MCF. Mais tarde, soube que existia o Catalyst: um programa da Fundação que punha as crianças a ensinar os adultos a ler. Eram 600 crianças para selecionar 7 professores. Milon “estava no 4º ano enquanto os outros candidatos estavam no 8º”. Foi à entrevista “sem esperança”, mas teve uma das notas mais altas no processo de seleção e foi escolhido para dar aulas a pessoas de 40 e 50 anos. Milon tinha 10.

- Aprendi muito neste processo. Eles questionavam-me constantemente: és um miúdo, o que nos podes ensinar que não tenhamos aprendido com a experiência de vida? Tinha de estar sempre a provar que era capaz. E, normalmente, são os adultos que cuidam das crianças, mas ali eu era responsável pelo futuro deles.


No final, o resultado acabou com o preconceito: cerca de 20 dos 50 alunos da turma arranjaram emprego e tornaram-se financeiramente independentes. Com a educação, ganharam um visto de saída da pobreza, um passaporte para a liberdade: “Ainda hoje mantêm contacto com a minha família e perguntam por mim”.


Uma das mães adoptivas, Caroline, e os pais biológicos de Milon

No final desse ano, Milon teve como recompensa, junto com outras crianças, uma viagem à praia, ali mesmo na costa do Bangladesh - tão perto e tão longe.

A oportunidade seguinte surgiu com um campo de férias no Dubai. Milon estava atento e agarrava tudo o que podia. Mais: fazia por merecer. Foi selecionado porque tinha “excelentes notas” e “mesmo doente nunca faltava à escola”. Além disso, “participava em todos os eventos da Fundação” e mantinha-se activo no voluntariado. Foi também recomendado pelos alunos adultos a quem deu aulas - os mesmos que, inicialmente, não gostavam dele.

No Dubai, pode viver o sonho de qualquer criança: ir a parques aquáticos, andar de patins, fazer snowboard… divertir-se. Mas era mais do que um campo de férias. Maria da Conceição, fundadora da MCF, queria conquistar um futuro para aquelas crianças. Por isso, fizeram visitas a escolas, workshops para aprenderem a falar em público, eventos onde contavam a sua história… Estavam a aprender a criar ferramentas para o futuro. Até que uma escola do Dubai ofereceu 80% das propinas às sete crianças que ali se encontravam. Faltava encontrar financiamento para o resto. Milon trabalhava no mercado para angariar fundos e viveu, ao longo de oito anos, com seis famílias adoptivas, de vários pontos do mundo.

- No Dubai vivi com seis famílias adoptivas: de França, Itália, Índia, Austrália. Ao longo deste tempo, tive que me adaptar às barreiras culturais. Por exemplo, eu não abraço os meus pais ou irmãos. Para mim, não é natural. Mas eu sabia que estava ali para ter a minha educação e que eles eram boas pessoas e queriam ajudar-me. Então adaptava-me. As famílias ensinavam-me o que era apropriado na cultura deles e o que não era. O mesmo que os pais ensinam aos filhos. Tive óptimas famílias e ainda mantenho o contacto com eles.


Mesmo com algumas barreiras iniciais - nas famílias e na escola - Milon chegou ao topo. Rapidamente tornou-se um dos melhores alunos da escola e conseguiu uma bolsa que lhe garantia todas as despesas: propinas, alojamento, refeições e transportes.

A experiência foi “fantástica”. Milon garante que, apesar das diferenças culturais, nunca foi vítima de bulliyng porque todos estavam ali para estudar. Foi líder estudantil, ganhou debates porque aprendeu “com a vida” a ter “bons argumentos” e foi convidado a participar numa Conferência de Líderes Mundiais. Após ter discursado, recebeu uma “carta pessoal” de Bill Clinton a agradecer “o impacto que as palavras que disse tinham tido nas outras pessoas”.


Milon e os irmãos adoptivos Patrick, Joe e Carrie

Milon vivia um sonho, cheio de oportunidades, bem longe da realidade do Bangladesh. Mas não esquecia a família nem a realidade que lá tinha deixado. Enquanto estudava, continuava a trabalhar e a poupar dinheiro para enviar para casa.

Quando terminou o 12º ano, sabia que queria continuar a estudar, mas já não tinha bolsa. As duas últimas famílias que o tinham adoptado também iam deixar o Dubai e regressar ao seu país de origem: Austrália. O que fazer?

- Com a ajuda da minha família adotiva, escrevi uma carta à The Varkey Foundation [fundação que apoia a educação de crianças carenciadas]. Tinham-me dado a primeira bolsa, no secundário, e pedi mais apoio para continuar a minha educação. Queria fazer um curso de Psicologia. Apresentei uma carta muito emotiva e eles deram-me uma bolsa no valor de 170 mil dólares australianos (mais de 100 mil euros) com tudo pago na Austrália: comida, alojamento, propinas, cuidados médicos.


Milon enquanto líder estudantil em La Trobe

Milon sabe que “o mundo tem muitas oportunidades” e está disposto a agarrar todas. Dá de si: muito. A ele próprio e aos outros. Já na Austrália, além de estudar, acumula um sem número de trabalhos para desenvolver competências e poupar dinheiro para a família: professor de inglês e de natação, instrutor de caiaque e alpinismo, um trabalho num bar, consultoria empresarial, webdesigner e YouTuber.


- Até onde queres ir, Milon?, pergunto.

- Até onde…?

- Sim. Quão longe?

- Não sei qual é o limite da minha ambição. Mas quando souber, digo-te.


Milon veio do nada. Mas sabe que, com esforço, dedicação e resiliência, o mundo pode dar-lhe tudo.


- Se tenho uma ideia e ela falha acho uma tremenda oportunidade de aprendizagem. Isso aprendi com a Maria Conceição: se algo falha, pode resultar de outra forma. Addison, que inventou a luz, não ficou famoso quando falhou 999 vezes, ficou famoso pela única vez que foi bem sucedido. As pessoas só valorizam as vitórias. Adoram dizer-nos que algo não vai funcionar. O caminho para o sucesso é longo. Quanto mais tentarmos, mais hipóteses temos de ver os resultados.


Milon pode não saber ainda até onde pretende chegar. Pode até ainda não ver a meta. Mas, tendo em conta o ponto de partida, já chegou longe. Muito longe.


 

Esta história é real e relata a vida de Milon, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 6 de novembro de 2020. Foi escrita no âmbito de um trabalho que está a ser realizado para a Fundação Maria Cristina.

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