“Não tínhamos dinheiro para fazer uma vida normal. Comíamos uma vez ou duas por dia, eu brincava com o lixo e com os pneus dos carros e nadava nos lagos com água suja, que também usávamos para tomar banho. A nossa casa não tinha canalizações nem eletricidade ou gás. Usávamos lenha para cozinhar e tínhamos de andar dois quilómetros para ir buscar água potável”.
Al Amin nasceu a 27 de novembro de 1998 e cresceu nos famosos bairros de lata de Daca, no Bangladesh, para onde os pais foram à procura de melhores condições de vida. O pai puxava riquexós, a mãe trabalhava como empregada em casa de outras famílias e o irmão - 10 anos mais velho - frequentou a escola durante algum tempo, até ter de ir trabalhar para uma fábrica para “pagar os estudos”. Já Al Amin ia a escolas de organizações internacionais, como as Nações Unidas, que davam apoio às crianças nos bairros de lata, mas apenas tinha “papel e lápis para pintar”.
Maria Conceição era hospedeira de bordo quando, em 2005, numa escala, decide visitar um destes bairros de lata. Ficou tão impressionada que, a partir daquele momento, encarou a ajuda àquelas pessoas como uma missão de vida e criou a Fundação Maria Cristina (MCF).
- A Maria viu como a nossa vida era miserável e deu-nos várias coisas que comprou como pão e outros bens essenciais. Assim que a viam, os miúdos iam a correr para ela! Ela disse aos meus pais que queria ajudar-nos, pôr-nos na escola, dar-nos melhores condições de vida… e os meus pais aceitaram porque viram que seria uma grande oportunidade para os filhos. A Maria veio com uma grande carrinha e mudámo-nos para a zona onde ela tinha a escola. Arranjou-nos uma casa com eletricidade e casa-de-banho.
Al Amin tinha sete anos quando a vida começou a mudar. Quando lhe pergunto o que sentiu, tem dificuldade em exprimir-se, com a voz meio embargada, à procura das palavras certas.
Não consigo exprimir em sentimentos ou palavras… O bairro de lata era o meu mundo. Não acreditava que houvesse outra coisa além daquilo! Quando vi que havia outro mundo, com melhores condições de vida, água potável, gás, eletricidade, canalizações… Era tudo um sonho!
Foi também nesta altura que começou a estudar e era “tudo fantástico”:
- Tinha roupa, livros, sapatos, até um corte de cabelo decente… Era tudo tão bom! Adorei a escola desde o 1º ano! Fui sempre o melhor aluno. Estudava muito! E, como deram oportunidade à minha mãe de trabalhar na escola, ainda estudava mais porque as professoras podiam ir dizer-lhe se eu não estudasse (risos).
Gostava de Ciências e de descobrir “invenções novas”. A Geografia também o apaixonava e, como não tinha essa disciplina na escola, “estudava à parte para conhecer os países”. Ainda hoje devora o atlas como se quisesse devorar o mundo.
- Trabalho há quatro anos como coordenador dos voluntários na MCF e quando vêm cá tripulações das companhias aéreas recebo-as, instalo-as e faço visitas guiadas. Quando dizem de onde vêm, eu já sei várias coisas sobre os países deles e ficam muito surpreendidos.
Quando a escola da MCF fechou, por desentendimentos com a equipa de gestão local e em resultado da crise financeira internacional, muitos alunos sentiram-se perdidos.
Quando a escola da MCF fechou, ficámos quase um ano sem aulas. Durante esse ano, vários alunos como eu foram para uma escola no Bangladesh, mas o ensino era em Bangla (língua oficial). Como a educação é muito importante, eu tentei estudar, mas muitos amigos desistiram e foram trabalhar para fábricas, enquanto as meninas casaram.
Um ano depois, Maria Conceição conseguiu arranjar financiamento e pôs os antigos alunos da MCF a estudar num colégio privado, com ensino em inglês.
- Quando fui para a escola privada, havia um ambiente completamente diferente. Os outros alunos eram ricos, tinham tudo: casa, carro, muito dinheiro. E nós tínhamos de acompanhá-los.
- E como é que foi, para ti?
- Foi difícil ao início, mas depois ficámos amigos. Estávamos todos no mesmo barco. Depois até começámos a ir a casa deles e fazíamos festas.
- E como é que um menino que vivia numa casa sem condições básicas, num bairro de lata, se sentia nesse ambiente de luxo?
- A Maria educou-nos como cidadãos globais. Não interessa de onde vens ou para onde vais. Somos cidadãos do mundo. Temos de nos habituar ao ambiente seja qual for.
A vida de Al Amin tinha melhorado muito em comparação com a realidade do bairro de lata. No entanto, alguns problemas continuavam a ser de terceiro mundo.
- No 8º ano perdi o meu pai…
- Faleceu?
- Não, perdemo-lo mesmo. Ele tinha problemas psicológicos, saía de casa, desaparecia e, às vezes, voltava a aparecer, passado meses, em estações de autocarro ou de comboio. Aconteceu três ou quatro vezes. Mas, desta vez, quando eu estava no 8º ano, saiu e nunca mais voltou. Procurámos por ele em todo o lado e nunca o encontrámos. Até hoje não sabemos o que aconteceu.
- Mas que problemas psicológicos é que ele tinha?
- Ele tinha problemas mentais, não sabemos exactamente o quê porque nunca o levámos ao Hospital. Não tínhamos dinheiro suficiente para isso.
A mãe passou a ser o único sustento da família, enquanto o irmão “casou e vive noutra parte da cidade”. Em criança - talvez influenciado pela profissão de Maria Conceição - Al Amin “queria ser piloto”, mas, quando percebeu que “quando existem acidentes de avião, ninguém sobrevive”, desistiu - confessa, um pouco envergonhado com o seu receio. Depois de terminar o 12º ano, candidatou-se a International Business Management, no Instituto Politécnico de Bragança, em Portugal, tal como muitos outros estudantes da MCF, mas não conseguiu financiamento e perdeu o primeiro ano. No ano seguinte, em 2020, voltou a candidatar-se, mas não foi admitido e, até hoje, não sabe porquê. Pelas suas palavras, parece estar envolto num novelo burocrático de onde não sabe como sair.
- Não sei o que se passa. A Maria disse-me para eu contactar a Universidade, mas a Universidade diz-me para eu resolver com a Maria. Fui o único que não fui admitido. Estão lá os meus amigos todos. Se eu soubesse o motivo, tentava resolver, mas eu não sei o que aconteceu. Se isto não se resolver, terei de ficar a vida toda no Bangladesh.
Al Amin garante que está “a tentar tudo por tudo” para ir para Portugal porque “ir para a universidade sempre foi um sonho desde a infância”. Depois da faculdade, gostava de trabalhar na companhia aérea Emirates porque sente que foi “graças à ajuda deles” que pode voltar a estudar. Sonha também em ajudar a família - “retirá-los da pobreza” - e “ajudar crianças desfavorecidas” - como ele.
Enquanto não obtém as respostas que procura, dá aulas em part-time e continua a fazer voluntariado para a MCF - com a qual colabora há cinco anos e promete que vai “sempre ajudar”. Vive com a mãe e partilham a luta pela sobrevivência.
- Em março de 2020, a escola onde a minha mãe trabalhava fechou por causa da Covid e ela perdeu o emprego. Tornou-se mais difícil ter dinheiro para a renda e para a comida. Tento dar o meu melhor para ajudar a minha mãe. Mas sinto que sou um fardo para a família. A vida agora não me sorri. Espero não ter de ficar para sempre no Bangladesh.
Al Amin tem, para já, o sonho interrompido, mas espera que, de alguma forma, surja uma luz ao fundo do túnel que o permita seguir o rumo que idealizou, pelo qual trabalhou e pelo qual continua a lutar. Al Amin ambiciona fazer parte de um mundo melhor, mais igualitário, onde todas as pessoas tenham direito a sonhar e a perseguir os seus objetivos, independentemente da sua origem ou do local de onde vêm.
Se quiser ajudar este jovem a continuar os estudos, pode contribuir através de uma campanha de angariação de fundos. Informe-se também sobre o trabalho desenvolvido pela Fundação Maria Cristina no Bangladesh através do site, Facebook ou Instagram da MCF.
Esta história é verídica e relata a vida de Al Amin, contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 15 de fevereiro de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho realizado para a Fundação Maria Cristina.
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