Tenho medo do meu pai. Ele ameaça matar a minha mãe e diz que não somos filhos dele. Não sei por que diz isso. Quando o meu avô morreu, o meu pai ficou com alguns desequilíbrios mentais e começou a comportar-se assim. É um bocadinho agressivo. Tenho muito medo que ele faça mal à minha mãe”.
A revelação veio no final da nossa conversa. Após mais de uma hora, Disha, 18 anos, partilhou pormenores sobre uma vida difícil e com dificuldades, do ponto de vista financeiro, mas onde o amor parecia comandar. Mesmo sendo a primeira de duas filhas, duas meninas, num país como o Bangladesh, onde, culturalmente, as mulheres são vistas como “um fardo” para as famílias.
- A minha família não pensa assim. Nunca nos diferenciaram dos rapazes. Todos nos amam da mesma forma.
Nasceu em casa dos avós, onde viviam também os pais, o tio, a mulher do tio e uma filha. O pai de Disha praticamente “não trabalhava”, a mãe procurava ganhar algum sustento numa fábrica de tecidos. Mas o maior suporte vinha dos patriarcas da família.
- O meu avô era construtor civil e comprava a comida, a minha avó pagava a renda. Os meus avós sempre nos ajudaram.
Nesta altura, não faltava dinheiro para a comida. Mas não havia para a educação. Disha ainda frequentou o primeiro ano numa escola pública, quando, em 2007, conheceu Maria Conceição.
- Um dia, quando estava na escola, foram lá uns visitantes da Fundação Maria Cristina (MCF). Iam com algumas crianças e explicaram que a escola da MCF ia ser uma boa oportunidade para nós. Eu estava um bocadinho assustada. Pensei: ‘Quem são, o que querem de nós?’. Mas a minha mãe explicou-me que ia ser bom para mim ter educação e aprender inglês. Só quando cresci é que me apercebi da sorte que tive.
Mas também a sorte, por vezes, requer muito trabalho.
- Quando comecei a frequentar a escola da MCF foi muito difícil porque só sabia falar bangla [língua oficial do Bangladesh, também conhecida como bengali]. No primeiro dia, estava com receio. Não sabia o que dizer, o que fazer. Eu e as outras crianças que tinham vindo da minha escola não sabíamos nada de inglês. No intervalo, ficámos na sala de aula porque não sabíamos onde ir. Então, os professores vieram e deram-nos comida. E depois a aula recomeçou. Quando cheguei a casa estava tão feliz!
Até hoje, adora disciplinas como Ciência e Ambiente. Talvez porque, no contexto em que cresceu, nada disto podia ser valorizado.
- Quando era pequena vivia numa casa sem eletricidade, gás ou água canalizada.
- Como faziam para ter água?
- A minha mãe ia pedir água potável a umas casas ali perto.
- E quantas pessoas viviam na vossa casa?
- Partilhávamos esta casa com quatro ou cinco famílias e dividíamos tudo: cozinha, casa-de-banho…
- E era possível ter privacidade?
- Não tínhamos privacidade! Só no quarto. E, mesmo no quarto, éramos seis pessoas: o meu pai, a minha mãe, a minha irmã e os meus avós. No outro quarto, estavam os meus tios e a filha deles. Havia sempre muita gente e muito barulho.
- E conseguias estudar ou fazer os trabalhos de casa nesse ambiente?
- Fazia os trabalhos de casa na escola ou assim que chegava a casa. O meu tio arranjou-me uma luz que se carregava e eu costumava ler com essa luz.
No ano em que entrou na escola da MCF, o tio morreu. Disha ouviu dizer que foi suicídio, mas não sabe se é verdade. Com menos um sustento, em casa, as dificuldades aumentavam. A ajuda veio da Fundação Maria Cristina através de bens alimentares como “arroz, batatas, óleo, ovos”. Até que a escola da MCF fechou, por divergências com a equipa de gestão local e em resultado da crise financeira internacional.
- Quando a MCF fechou, não tínhamos forma de fazer as refeições todas. Às vezes não tomávamos o pequeno-almoço, às vezes não jantávamos.
E, sem perspectivas de continuar a educação em inglês, Disha sentiu-se sem rumo.
- Quando a MCF fechou, a minha mãe ficou muito assustada. Eu não sabia Bangla, só inglês. Os meus pais não sabiam o que fazer. Não podia ir para uma escola Bangla porque eu só sabia aprender em inglês, mas o ensino em inglês só existia em escolas privadas que os meus pais não podiam pagar. Estava no 5º ano e acabei por ser admitida numa escola primária. Mas não consegui ter bons resultados porque o ensino era em Bangla.
Maria Conceição conseguiu regressar ao Bangladesh cerca de um ano depois e, através do apoio de patrocinadores, deu a oportunidade a vários ex-alunos da MCF de voltaram a estudar em inglês, em escolas privadas.
- Fiquei assustada outra vez porque eram escolas muito bem frequentadas. Eram pessoas diferentes de nós. Nós vivíamos nos bairros de lata, eles vinham de famílias ricas.
Aos poucos, Disha percebeu que os novos colegas eram “amigáveis” e tornou-se mais “fácil falar com eles”. Para além dos alunos, também a escola era completamente diferente da realidade que tinha conhecido um ano antes.
- Na escola primária onde estive havia muitos alunos, não havia espaço. Nesta escola, só havia 20 ou 30 alunos por cada sala de aula. Tínhamos boas salas, casas-de-banho, boas condições de aprendizagem. Tínhamos projectores e, na primeira vez que os vi, nem sabia o que eram! Será uma televisão?, pensei. Fiquei assustada!
Disha está, actualmente, a frequentar o 12º ano e ambiciona fazer um estágio no Dubai, tal como outros colegas da MCF, e entrar na universidade, em Portugal, para estudar Engenharia Química. A irmã, quatro anos mais nova, frequenta o 9º ano, numa escola pública local, com ensino em Bangla.
- Sou a única da minha família a ter a hipótese de ter uma vida melhor. Quando entrei na MCF, a minha irmã era muito pequena, tinha dois ou três anos. Por isso, não teve esta oportunidade.
O avô faleceu, em 2019, de causas naturais e a avó continua a ser o principal sustento da casa: paga “as contas principais” como “a renda da casa e a comida” com o que ganha numa fábrica de tecidos. A mãe é empregada em casa de outras pessoas e o pai “não trabalha”.
- O pai não trabalha. Só consegue fazer alguma coisa 3 ou 4 meses por ano…
- Mas porque é que ele não consegue trabalhar mais?
- Não sabemos. Ele diz muitos palavrões, por isso, deixámos de lhe perguntar. Se nós dizemos alguma coisa, ele é mau para nós. Se a minha mãe diz alguma coisa, ele é mau para ela.
- Mas mau… como assim? Bate-vos?
- Ele não nos bate, mas é mau para a minha mãe…
- Em que aspecto?
- Ele usa palavras feias com ela. Faz muitas acusações: ‘porque fizeste isto ou não fizeste aquilo’. Quando ele está bem, trata-nos bem. Quando está mal, é mau para nós.
- Quando está mal de quê? Tem algum problema?
- Não sei mesmo que problema é que ele tem. Nunca lhe perguntámos porque temos medo da reacção. Mas a minha mãe diz que ele ama-nos.
- E tu acreditas? Sentes esse amor?
- Ele não diz diretamente que nos ama, mas se alguém diz mal de nós, ele reage logo e não permite que os outros nos tratem mal. Ele é que, às vezes, trata-nos bem, outras vezes, trata-nos mal. E eu tenho medo quando ele é mau.
Enquanto fala, Disha parece olhar por cima do ombro como se receasse que alguém a ouvisse. Quando fala dos planos para o futuro, parece estar dividida entre querer fugir da incerteza e ficar para proteger a mãe - mesmo sem saber ao certo de quê. Ao contrário de muitos dos seus colegas, depois de concluir os estudos, Disha pensa regressar ao Bangladesh.
- Quero trabalhar no Bangladesh porque o meu país não está desenvolvido. Quero ajudar a minha família e, tal como a Maria fez, quero dar oportunidades às crianças dos bairros de lata para terem educação.
Disha está prestes a dar o salto para uma nova realidade, uma nova oportunidade, fora do Bangladesh. Só precisa de se agarrar à coragem e que, mais uma vez, lhe dêem a mão. E eu espero que ela tenha as duas. Se quiser e puder ajudar a Disha ou outras meninas e meninos como ela, veja no site, Facebook ou Instagram da Fundação Maria Cristina como pode fazê-lo.
Esta história é verídica e relata a vida de Disha contada na primeira pessoa, durante uma entrevista realizada por videochamada no dia 29 de março de 2021. Foi escrita no âmbito de um trabalho realizado para a Fundação Maria Cristina.
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